E nós criamos Deus à nossa imagem e semelhança

Certa vez, eu ouvi de uma senhora que, se fosse da vontade de Deus que eu ficasse solteira, que eu deveria aceitar. Achei as palavras dela estranhas. Por que seria da vontade de Deus que eu não casasse e tivesse filhos? Casar e formar uma família é um sonho bastante normal e o senso comum nos diz que todos têm direito de realizar seus sonhos e ser felizes. Essa atitude de um Deus que decide assim as vidas das pessoas – até nos âmbitos mais pessoais- parece mais própria de um tirano opressor ou de um pai que decide as vidas de cada um dos seus filhos sem considerar suas vontades e sentimentos. Um ser tão perfeito poderia agir de forma tão humana, oprimindo as pessoas e impedindo-as de se realizar? Dessa forma, não parece que estamos criando Deus à nossa imagem e semelhança, tornando-o um ser mesquinho e insensível?

Quando se fala algo do tipo “se for da vontade de Deus”, a pessoa na verdade atribui a Deus características bem humanas, dando mesmo a entender que Ele faz acepção de pessoas, determinando quem será feliz ou viverá frustrado por não conseguir realizar seus sonhos. No caso do que disse a senhora com quem falei sobre casamento, eu lembrei que as mulheres que não casam ainda são estigmatizadas. Pensemos nos apelidos que recebem de “tia”, “moça velha” ou na piada de que ficaram no “caritó”, expressão que significa depósito de coisas velhas. E sabemos também que muitas mulheres que não conseguiram casar e constituir suas famílias são frustradas e infelizes. Se essa foi a vontade de Deus para elas, que Deus é esse? Por que Ele determinaria que umas mulheres podem casar e outras devem ficar solteiras?

Se examinarmos bem, certos argumentos são tolos e superficiais, podendo ser facilmente derrubados por qualquer reflexão. Examinados a fundo, só nos fazem concluir que Deus é cruel e impiedoso.

Se não realizamos um sonho, é comum ouvirmos “Deus age de formas misteriosas”; “fazemos nossos planos mas Deus tem algo melhor para nós”. Como podemos saber se o que nos aconteceu foi mesmo o melhor para nós? Com certeza, não receberemos um aviso dos céus nos dizendo que o que nos ocorreu foi o melhor.

Ainda por cima, se nossos planos não dão certo, isso pode se dever a mil fatores e, com certeza, o mais forte deles é a incerteza. A gente sabe que nem sempre os esforços dão resultado. Vejamos um exemplo: estudar muito aumenta as chances de passar num concurso, mas não é garantia total de aprovação. Pode ser que digam ao candidato frustrado (a frustração é maior se a pessoa deu tudo de si) que foi melhor assim, que “Deus sabe o que faz”. E há como o candidato frustrado saber que foi melhor para ele? Melhor dizer: “Você fez o melhor que podia, mas nem sempre nossos esforços dão o resultado desejado. Não duvide de sua capacidade.”

Os que usam o argumento de que foi a vontade de Deus parecem não perceber que, além de lhe atribuir qualidades humanas, destroem o princípio do livre-arbítrio. Se tudo que ocorre é vontade de Deus, cadê nossa liberdade de escolha? Porém, a velha desculpa de que “tudo é como Deus quer” logo muda ao falarmos das mazelas do mundo. Os mesmos que falam de um ser que manipula nossos destinos como se nós fôssemos marionetes falarão que os problemas são resultado de não usarmos direito nosso livre-arbítrio.

Entretanto, o livre-arbítrio não é assim tão absoluto e há vários casos em que uma pessoa se vê numa situação além de seu controle. Podemos dizer que uma criança que é molestada sexualmente por aqueles que deveriam protegê-la sofre por não usar bem seu livre-arbítrio? Qual a liberdade de meninas muçulmanas que, ainda crianças, são forçadas a casar com homens com idade de ser seus pais ou avós? Os negros escravizados tiveram liberdade para escolher? Além disso, somos condicionados pelo ambiente em que vivemos. Quem tem mais dinheiro e recebeu melhor educação será mais livre que alguém nascido num meio pobre e que não oferece muitas oportunidades.

Ainda há o argumento duvidoso de que estamos sofrendo porque é “Deus nos testando” e que somos testados até não aguentarmos mais. E por que Ele, sendo onisciente, tem de nos testar? Aliás, uma pessoa que deixa outra sofrer para ver até que ponto ela aguenta soa mais como uma pessoa sádica. Ninguém com o mínimo de compaixão e empatia faria algo assim.

Tomemos cuidado ao falar qualquer coisa para justificar o sofrimento humano ou acontecimentos. Nossas crenças – sejam quais forem – podem influir no nosso ponto de vista e nos levar a tirar conclusões irracionais sobre o que acontece. Muitos dos argumentos mencionados nesse texto, aliás, só fazem supor que Deus é um rabugento injusto que fica decidindo quem será ou não feliz porque é assim que quer.