En Passant

"Nessa hora então, nessa hora inicial,

começou a cumprir-se este destino

ainda de todos nós." - JB.

Filetes dourados reluzem nos prédios ao horizonte, é a certeza de um novo dia. Permaneço na cama e em silêncio. Posso ouvir os passos de pessoas indo trabalhar. Mais tarde, os risos de estudantes apressados misturam-se ao canto dos pássaros. Ouço também o som das folhagens do pé de fruta do vizinho, olhá-lo me causa desânimo, pois vejo suas frutas — todas podres — balançando por entre os galhos. Imagino a angústia de sê-las, quer dizer, não sei se elas têm consciência de si, ou de mim, não sei se possuem a mesma ciência de que, mais tarde, poderão estar todas ao chão.

Eu temo a morte. Temo ficar velho, apático, ranzinza, temo perder tudo, não ter nada a perder... Eu temo a solidão. Nisso entendo que o temor da morte é, sobretudo, um temor de si mesmo. Às vezes sinto como se em meu peito ocorresse um infarto por dia, consequência de sentimentos dos quais nunca senti. Se perguntam como estou, a resposta é automática: “estou bem”. Mesmo não sabendo o que é estar bem, digo assim mesmo. O problema é que tenho medo a todo o instante, e este medo consome todo meu desejo de viver. Às vezes queria que se tratasse de um drama adolescente, uma crise momentânea, coisa de nossos vinte e poucos anos. Mas não é. Talvez eu devesse era ter cometido uma violência absurda, feito loucuras de arrependimentos eternos, qualquer coisa, deveria ter feito qualquer coisa para que hoje não me restasse somente esta dor, que, por vezes, me é inconsolável.

Outro dia, por desespero, tentei me distanciar da vida, mas percebi que tudo a meu redor é vida, até mesmo distanciar-se dela. Restou-me, então, desfrutar dos pequenos e aparentes prazeres. Como nesta tarde, olhando-a estender suas roupas no varal; as costas nuas, o decote de seu vestido, suas coxas marcadas pela barra molhada… Tudo nela incutia prazer. Porém não durou muito, logo me reconheci patético, igual a todas as outras vezes. Ainda que sejamos indóceis, haverá sempre esta âncora pesando sobre nossas ações. Isso porque necessitamos do outro para nos enxergarmos — “necessitar” é apenas o melhor dos eufemismos que consigo pensar para esta situação perturbadora. Tem coisas das quais tenho vergonha de contar até a mim mesmo, tem coisas das quais gostaria de expressar, fazer, sentir, mas elas vão contra tudo fora de mim, e isso por muito se reflete aqui dentro. Daí percebo que na verdade “estou” dois: um julgando e outro desejando. Esta, certamente, é nossa tarefa hercúlea: desprender-se das amarras do julgo de outros.

Aceitar-se, assim como somos, requer coragem encontrada apenas em fabulações — e nos hipócritas. Se me elogiam, não acredito, gosto de manter presente o drama de que sou insuficiente. Se depois me desacreditam, aí me irrito. Embora o ego seja desmedido em ambas as situações, me pego dissimulado nestes momentos. Isso se deve a minha angústia de não identificação com nada que seja humano. Mas o que não é humano? Não sei! Por isso recorro à poesia, não por achá-la transcendente, mas é onde me escondo na tentativa de provar que, como muitos, também possuo meus talentos. Por detrás, um eu que muito sente e pouco deseja, demasiadamente pusilânime; defronte egóico, inseguro.

Quando paro para pensar em todas as coisas por mim conquistadas, a resposta me falta, pois em verdade nós não temos nada. Dinheiro, casa, carro, carreira, amor, tudo isso tem em comum sua transiência. Por que então me sinto um fracassado? Talvez seja porque sou muito mais novo que o mundo, pequeno demais a ponto de transgredi-lo. Como todo ser humano — e ser humano é, também, tomar partido das coisas —, criei certos valores pessoais, valores estes que não fui capaz de transpor. Não que eu seja apegado às ideias, justamente o contrário. Contudo, novamente me peguei dissimulando. Minha personalidade (desdém) não me permite levar-me tão a sério assim. Tanto porque não posso ser fiel a mim, pois eu nem mesmo existo. Quais ideias, valores e conceitos eu poderia defender e que fossem exclusivamente meus? Quais ideias e valores e conceitos não são também de outros quaisquer? Quais ideias e valores e conceitos não foram criados e defendidos e modificados por outros anteriores a mim? Eu não posso ser fiel a mim, pois, ser fiel a mim é ser fiel ao outro. O que busco, o que realmente busco, distingue-se por sua inefabilidade — e me faz suspeitar que seja meramente nada. Alguns podem até achar pouco humano, mas não há nada mais humano que sofrer por não ser nada mais que isso.

— “Só é meu, o mundo que trago dentro da alma.”. Revendo-me por cada época de minha vida, a infância talvez tenha sido o que de melhor fui. Diferentemente do que pensei, não foi tudo em mim que morreu, há algo em mim que nunca mudou. Há algo em mim que, independente de tudo que me aconteça, de tudo que eu aprenda, de todas as pessoas que eu venha conhecer, de todas as escolhas, os acertos, enganos, ..., não muda. Como naquela bela crônica da Lispector: "se eu fosse eu...”. Se você fosse você, o que faria? O que há em ti que não muda? Esta será a pequena parte de você que te fará reconhecer-se durante os dias, que te guiará por este escuro — é sua característica anímica.

— “Entre os meus amigos vivos, não há poeta que eu não ame”. Nesta noite escura, arvora em mim uma súbita vivacidade, quase que desconhecida, diferente de meu recorrente temperamento moribundo. São momentos onde me dou conta de certa esperança existente em todo fim de dia, não pelo fim em si, mas pelo próspero recomeço. Dou conta também de que minha pouca idade, minha aparência viçosa, é incondizente com esse meu cansaço. Então relembro o Bandeira, seus dramas e incertezas de um dia seguinte. Pergunto-me se ele estava todas as manhãs pronto pro seu último dia, se se questionava ser jovem demais para sua condenação. Sei que não o sou, meus dramas foram outros, porém, como o tal, segui pelo mesmo caminho: o da poesia. Seria a poesia a redenção de quem não viveu a vida?

Mas a noite escura não esconde minhas mãos, elas estão sujas de sangue, um sangue que não me pertence. Assassinei diversos durante o dia, e não, não me saio incólume deste ato. Vivemos nossas vidas pensando estar matando um leão por dia, entretanto, matamos muito mais que isso. E assim eu o fiz. Hoje matei tudo que estaria a me sobrevir: foi-se o marido, o pai, o namorado, o amigo, o funcionário, o vizinho e absolutamente tudo — e todos — que eu poderia ser. Matei todo o meu devir porque muito antes se fora quem havia me tornado primeiramente. De minhas mãos escorrem o sangue de uma vida. Agora em meu corpo se apagam todos os toques nele recebido; meus olhos esquecem todos os antigos olhares avistados; em meus ouvidos silenciam-se todas as palavras já ouvidas. Hoje matei tudo, tudo, todos!

— “Onde você esteve enquanto estávamos nos drogando?”. Por muito tempo estive perdido, e em todas as vezes que pensei ter encontrado o caminho, mais amarguei seu abandono. Que fui, senão sucumbido? Que fui, senão em todas as oportunidades oferecidas, inerte? Que fiz, senão me entregar aos pequenos vícios na tentativa de abafar a dor de minha própria ausência? Perdoe-me, ó Deus, mas é que hoje eu matei o único ser humano que eu realmente vi nascer. E este foi o meu último grande pecado.

[...]

Sob o vento frio de fim de madrugada, caiu, simplesmente, uma das tantas frutas entre aquelas apodrecidas — ela não verá a próxima nascente do sol, agora algo novo suplantará sua frágil existência. Enquanto isso, algumas outras permaneceram ali, em silêncio...

Desculpe a longa carta,

se houvesse tempo, a faria menor.

Um Rapaz Meio Estranho
Enviado por Um Rapaz Meio Estranho em 25/06/2018
Reeditado em 29/09/2019
Código do texto: T6373747
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