Casa, muro e asfalto

Um dia pensou ousar. Sair de cima do muro onde, por tanto tempo, estava. Gostava de observar a tudo e a todos e dali a visão era privilegiada. Via pessoas, o vento e o tempo, todos a passar. Indo e voltando, naquele constante movimento de seguir e recuar, ir para não retornar, ou desistir no meio do caminhar. Era fácil julgar, tranquilo permanecer por lá. Não podia ser notada e por isso ali continuava, como se nada a pudesse alcançar. Mas naquele dia se cansou, não queria mais ver o mundo lá embaixo a girar. Um salto resolveria o problema, mas qual lado optar? Dali tinha acesso aos extremos. Assim que a um escolhesse, o outro permaneceria inalcançável a sua vista. Teve dúvida e teve medo. De um lado sua casa e o vai e vem da sua vida planejada. Do outro, a rua movimentada e o transitar das rotinas inusitadas. Vacilou, pensou em continuar só por mais um pouco, ali de cima contemplar. E assim o fez, até escurecer de vez. Apenas a Lua a iluminar. Talvez fosse hora de entrar, mas num súbito impulso, teimou se aventurar. Um salto para a rua, mergulhou num mundo de incertezas. Caminhou até se perder e se deixou levar. Já não era mais possível retornar. Gritou, chorou, sentiu fome e frio, sentiu-se só, resistiu. Ergueu a cabeça, passos apertados, às vezes lentos para olhar uma ou outra paisagem, um meio fio para seu corpo descansar. E um céu estrelado a abençoar. Sem saber o que fazer, para cima olhou e implorou. Pediu carona, pediu ajuda, teve que confiar. Percebeu que sozinha não conseguiria, mas que também voltar ou ficar, só á ela a decisão caberia. Prestou muita atenção no caminho de volta, reconheceu formas, cheiros, flores, curvas e muros. Até chegar diante do seu e perceber que não precisava ficar lá em cima e nem escolher em qual lado ficar. Que a vida é mesmo esse transitar, de lados, de altos e baixos, de retas, curvas, descidas e subidas. De gente, de idas e vindas, de escolhas. De saltos. De casas, muros e asfalto.