Além dos rótulos

"Sonhos no bolso não pagam os boletos que se somam todo final de mês, não colocam o pão de cada dia na mesa, mas costumam nos preencher com luz e coragem onde há escuridão porque nós impulsionam a transformar nossos maiores obstáculos em grandes mestres."

          Sinto o peso de estar crescida quando sou ferida e devolvo as palavras amargas com o silêncio ou também pode-se explicar minha paralisia moral pelo fato de ter me cansado de tentar explicar aquilo que ninguém quer ouvir. As expectativas acabam por limitar a visão de quem me vê e acredita ter o domínio completo de mim, sem a ciência de que a superfície esconde segredos profundos, tanto quanto o silêncio que na visão de uns me faz arrogante, acomodada ou simplesmente desatenta.
          Os ponteiros do relógio me recordam de que não há mais tempo a perder. Ele escorre sem se importar se o acompanho, se meus passos estão de acordo com seu ritmo. Então, eu ofego, apoio às mãos sobre os joelhos e penso em voz alta: não posso pedir o que não tenho. Vou respirando fundo até trotar numa cadência coerente.
          A cada devaneio que tenho de como as coisas deveriam ser, continuo permitindo que em vez dos meus verdadeiros desejos, as folhas de papel onde eu depositava os desmandos da minha imaginação sejam rasuradas de todas as formas possíveis e imagináveis por quem determina meu valor pelas notas que tiro, pelos títulos que necessito obter para ser tratada com alguma dignidade, impondo regras que me colocam numa corda bamba em que meu destino final é o abismo.
          Talvez eu seja uma atriz encarnando o papel mais lastimável de sua carreira. Folheio minha participação no roteiro e por mais que me esforce para sentir a arte reverberar, soa tudo tão artificial. O sorriso, a maquiagem, a impostação de voz, as vestimentas, o ambiente. Encarno cenas vazias para um público que não leva a sério esse folhetim. Talvez ele tenha sido gravado para cair no esquecimento.
          Na calada da noite, acompanhada apenas de nostalgias, penso nos papéis em que entreguei minha alma, naqueles que me seduzem sobremaneira porque ainda acredito que tenho controle sobre mim, que me conheço mais do que qualquer pessoa no mundo.
Além dos rótulos.
          Sei o número que calço e o quanto é desconfortável me apertar num número menor tão somente para soar aprazível aos olhos curiosos que já escolheram como me julgar. Sou interessante enquanto acato as ordens e pareço ser uma ilusão criada num momento de profundo tédio.
          As poesias sem forma seriam a corda que me resgata de uma morte simbólica enquanto eu tento me salvar de quem finge me suportar? Onde vislumbro a esperança de um incerto amanhã? Onde posso me desnudar sem a censura de quem me rasura sem permissão?
          Não passo de um sórdido entretenimento. Planos insanos são feitos em meu nome, mas sem meu pleno consentimento. E assim vou vivendo sem realmente viver, engolindo os urros de dor, perdida na multidão, de mãos dadas com a solidão, esquadrinhando o horizonte em busca de um caminho onde mais do que entrar nos eixos, eu possa me sentir em casa...
          Como eu, pessoas morrem em vida todos os dias quando permitem que terceiros exerçam uma influência maior do que deveriam. Morremos no mesmo instante em que abrimos mão de algo que amamos em razão do medo. Saber ceder também é uma virtude, o oposto de calar um querer intenso por medo de falar mais alto, não só da certeira recriminação e sim porque ouvir a própria voz depois de tanto tempo em silêncio é um tanto quanto desconcertante.
          Oras, eu sei que tenho asas, que elas estão acuadas porque nunca antes acreditaram que poderiam voar. Eu poderia por ora arriscar uma voltinha, um versinho mais destemido, mas em vez disso madrugo escrevendo sobre minha falta de coragem, o quanto lamento por ter vivido em razão dos outros por tanto tempo que sou incapaz de procurar meu verdadeiro caminho.
Marisol Luz (Mary)
Enviado por Marisol Luz (Mary) em 29/11/2018
Reeditado em 08/04/2020
Código do texto: T6514535
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