Em casa

Curitiba, 25 de março de 2016.

A fuga geralmente é o impulso de uma alma inquieta que busca no mundo um cantinho para chamar de seu.

Não recrimino os motivos de ninguém, nunca teria o direito disso porque já enchi minha mochila com uma muda de roupas, mesmo sabendo que com meus trocados eu não chegaria nem à rodoviária.

Não era nem esse o mérito da questão.

Eu não estaria essencialmente fugindo das minhas responsabilidades e partindo os corações daqueles que me amam (ou penso que me amam), mas de mim mesma, dos meus pensamentos confusos, das dúvidas que eu não consigo solucionar e vão tirando o meu sono.

A moldura da minha janela é de um cinza melancólico em função dos tantos arranha-céus cujos projetos tombaram os últimos pés de ameixa, concreto de poluição tanto auditiva quanto àquela que bagunça as estações do ano e o ciclo de chuvas.

Não penso em ficar aqui para sempre, nunca escondi essa vontade de ninguém.

Quero ir embora, sim...

Para onde as ondas quebrem devagarinho nos meus pés.

Para onde o verde da natureza seja a melhor moldura do horizonte.

Para onde as cacofonias mundanas não atrapalhem o meu sono.

Para onde o medo não seja capaz de me localizar.

Para qualquer lugar onde uma vez instalada saiba que é meu lar, porque minha alma sente-se plenamente em casa.

Muitas vezes nem é preciso encaixotar pertences e contratar caminhões de frete, um abraço tem o mesmo poder.

Num abraço cabem dois corações num mesmo espaço sem que um anule o outro, visto que duas solidões se fundem num só empreendimento: renovar as forças um do outro.

O beijo é a aquarela ilustre que o poeta rabisca com os olhos fechados.

Um beijo nos olhos é a consentida permissão para que o amor inunde as inóspitas cavernas de um coração tão maltratado pelos falsos sinais.

Para brincar com a conotação, basta compreender que minha poesia consiste em sentir, e embora eu me esforce para trabalhar em linha reta, sei que entre um desvio e outro amadureço aquelas ideias juvenis com a finalidade de não jogar uma vida inteira pela janela em função do medo.

Ainda que a vontade de ir embora seja muito grande, não importa o quanto eu corra o mundo para sufocar, o motivo que poderia desencadear uma perigosa rota é aquele que dia após dia me ensina a ser mulher e a me abraçar na ausência de qualquer promessa.

Cabe-me dizer que o lugar para onde deseja ir minha alma não faz tanto assim a diferença, porque estando ela preenchida com amor, onde falte cor, que não falte um sorriso para iluminar, e que quem procura por mim me encontre, mas venha por inteiro e aceite o meu beijo nos olhos, não tente fugir, porque desviar do propósito pode dar certo no começo, no entanto não é a melhor saída.

Eu também tenho medo.

Gente grande, quando ama, também teima em se reprimir porque toda aquela inocência de antes a realidade vai levando embora aos poucos, a cada perda, a cada desilusão, cada amigo perdido, cada sonho inviabilizado por uma razão mais forte, e vai aprendendo a calar, a ser regida pelo orgulho, a ir vivendo nas pontas dos pés por entre uma trilha de ovos, evitando algum gesto mais indigesto, uma mudança muito brusca, evitando também a própria vida, esquecendo-se da coragem que ficou metida num armário qualquer.

Fugir daquilo que faz o coração bater pode ser uma boa alternativa para não se ferir, mas nem sempre é garantia de isenção, vide o último pensamento antes de espiar o mundo dos sonhos, antes de amanhã, de ser apenas mais um dia, um dia a exemplo de qualquer outro, porque quem perde o entusiasmo vai apenas cumprindo os itinerários, reclamando das mesmas coisas, fingindo que não sabe mais sonhar, que o amor é se acomodar, mas todo dia entre uma atuação e outra, o seu lado lírico fala um pouquinho mais alto.

Você um dia vai descobrir que o melhor lugar do mundo é quando a alma se sente em casa, quem sabe com um punhado de poesia no significado, enquanto os cacos do seu coração estiverem sendo colados para te reerguerem.

Marisol Luz (Mary)
Enviado por Marisol Luz (Mary) em 14/05/2019
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