Fantasma do Passado

Maldito cérebro o meu que me deixou privado, depenou-me de todas as lembranças, de todas as carícias e minudências do passado. Ah, foste tu, triste cérebro.... Amigos leitores, vejam só, os responsáveis por tamanha infelicidade têm nome e endereço certos: hipocampo e córtex.

Ambos os infratores, enquanto enjaulados neste meu crânio arruinado e supondo me fazer um tremendo bem, arbitrariamente deliberaram por apagar as memórias (muitas delas deliciosas) de todas as coisas que já passaram. Antes tão vívidas e cheias de cor, as imagens de paixão e de amor, tão arduamente construídas, agora esvaem na escuridão - elas sucumbem no esquecimento, tornam-se opacas, esfumaçadas, nebulosas. Não há mais nada para recordar!

Certamente, um intrincado mecanismo cerebral de defesa este. Com todas as forças engendrou e maquinou o hediondo crime que teve vez. Mancomunados com os neurônios, eles ingressaram na execução do delito. Valendo-se das sinapses elétricas, consumaram o intento sórdido: deletaram você da minha mente. É bem verdade que graças a isso pude seguir a minha vida em frente, com a cabeça bem erguida. Mas que ao menos me houvessem perguntado: "Mestre Supremo e Capitão-mor deste organismo fisiológico, poderíamos operar uma brutal intervenção em vossa memória, uma verdadeira amnésia, e dela retirar todas as lembranças daquela 'vigarista'?"

Primeiro, não a chame de "vigarista", seu salafrário! Mais importante, é claro que se me fosse oportunizada a faculdade de escolher, diria que não! Não, não quero esquecê-la... Se querem saber, eu nem mesmo faria um backup na "nuvem" de tudo que passamos juntos. Quero é ter todos os momentos e trazê-los comigo, bem arraigados na cabeça, grudados neste meu HD interno. E quanto a "seguir em frente", podem me questionar: isso é só um detalhe! Antes ser lacrimoso, não sair do lugar, viver sempre tristonho a relembrar, do que experimentar o que eu hoje vivo - um negrume tormentoso!

Se fecho os olhos - é só escuridão... Por mais forçosa que seja a regressão, do penoso processo nada é extraído. Esqueci-me, por exemplo, da primeira vez que senti o doce mel de seus lábios. Não me recordo sequer das noites fulgurosas que regozijamos ou das infindáveis discussões que travamos. Fogem-me as viagens que fizemos, os presentes que trocamos, os tenros abraços que nos demos. Reforço aos senhores: é só escuridão! E o que mais me dói é que eu nem mesmo consigo ilustrar na mente, não posso recapitular o enfadonho evento - o encontro final, o nosso tão intimista "adeus".

Naquele movimentado saguão de aeroporto, derramando-me em lágrimas, dei-te um derradeiro beijo, envolvi-te uma última vez em meus braços. Queria lembrar com exatidão o que dissemos um ao outro, queria saber se também chorava, se olhou para trás enquanto caminhava para o portão de embarque, se achou-me fraco por te deixar ir embora. São só vagas lembranças que trago, e ao tentá-las ver rememoradas logo se esfacelam em pó, viram areia em minhas mãos. Até mesmo os frequentes sonhos que tinha com você, logo após a partida, nos quais podia ver tão claramente a sua fisionomia - uma imagem radiante -, hoje não os tenho mais. Quando penso em você, tenho que criar uma personagem, atribuir-lhe traços por presunção. Eu te deduzo, pois, para mim, você nada mais é do que um fantasma do passado - sem cheiro, sem voz e sem rosto...

Necrófago
Enviado por Necrófago em 08/06/2019
Reeditado em 08/06/2019
Código do texto: T6668232
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