Menino Caio

Eu me lembro do menino Caio. Provavelmente todos que o conheceram, se lembra de seu corpo vivo, forte e ativo. De sua mente ágil, inteligente e criativa.

Lembro-me do seu sorriso pelos corredores da escola e como assisti-lo existir, acolhia a minha existência.

Quando conheci Caio, tinha por volta de 9 anos. Mal sabia eu sobre as profundezas da vida, já havia algumas questões e o começo de um aperto no peito por estar viva, mas nenhuma questão fortemente filosófica que me entristecia ou que me causasse alegria. Com 9 anos você está entendendo como funciona o corpo, como usar as pernas, os dedos da mão, o cérebro e também, por sorte, o coração.

Eu aprendi a usar meu coração com o menino Caio, que por ventura, também aprendeu a usar o seu comigo.

Eramos duas crianças de realidades privilegiadas, nossas rotinas eram distantes do que poderia se chamar natural. Estudávamos em uma escola grande, os corredores pareciam labirintos e os assuntos com o resto dos alunos permaneceriam pela superfície até o fim de nossos estudos se eu tivesse me mantido ali.

Caio e eu nos encontrávamos na sala de aula, nos corredores, na cantina e quadra. Nossas conversas eram através do silêncio, dos pensamentos e do futebol. Coisas sutis que nos uniam.

Nos amávamos por telepatia, e com nossos corpos amadurecendo, e sentido aquilo, íamos dando forma à paixão.

Até o fim de nossa convivência, não tivemos uma conversa profunda, não sabia o que ele fazia com seu tempo livre e se ele tinha vontade de usar de seus talentos no desenho. Ele também nunca me perguntou se eu usaria violão como minha forma de seguir a vida ou se eu continuaria correndo pelos corredores da vida pra sempre. Também nunca nos tocamos além de um esbarrão ou outro, ou um toque singelo com a ponta dos dedos que fingíamos não ser proposital.

Menino Caio cresceu, e eu também.

Não nos víamos mais.

Uma vez outra nos cruzamos pela cidade, e mesmo depois de maduros, mantemos nosso amor através dos olhares, pensamentos e silêncio. Isso era o que mais me encantava no menino Caio. Seu silêncio comigo e minha ânsia de que ele gritasse meu nome.

Menino Caio se tornou o tipo de homem que eu não teria sequer uma conversa superficial. Se entregou para as banalidades da vida e eu me aprofundei na filosofia.

Eramos praticamente a mesma coisa, duas crianças, dois corpos, duas almas que se amavam e se tornavam Uma através da poética de nosso amor telepático.

A vida aconteceu e ficamos distantes de sermos uma coisa só. Na verdade, nos tornamos indivíduos tão distintos que sua existência não mais cruzava meus pensamentos e provavelmente eu também não passava pela sua cabeça.

Pois bem, o tempo passou, me apaixonei diversas vezes, me agarrei ao violão, tive crises existenciais intensas. Vivi.

Menino Caio sofreu um acidente de carro e perdeu metade de sua cabeça. Hoje, ele está em coma. Vivo, mas morto.

Sua existência agora paira pelo plano das ideias. Ele se tornou apenas uma consciência flutuante. Em estado meditativo o tempo todo até que seu corpo descanse por completo.

Quão fascinante a existência, a fragilidade da vida, nosso pequeno tamanho, nossos grandes sentimentos e expectativas.

Sempre imaginamos a morte, sabemos dela como algo certeiro mas não sabemos sua cor, seu cheiro e seu formato. Menino Caio aguarda, em silêncio, como sempre soube fazer bem. Talvez ele esteja observando e tocando o que nunca tocou através do imaginário, usando de seu tempo para brincar com o que nunca brincou. Talvez o homem Caio não mais se lembre do menino que um dia eu conheci, ou talvez esse momento de silêncio profundo seja uma oportunidade de se reviver. Esses dias em sonho, me encontrei com ele. Um sonho repentino, pois já não mais lembrava que ele existia. Brinco de imaginar que ele, no tédio de estar preso nessa dimensão que não enxergamos, veio me visitar pra finalmente poder conversar e me tocar.

O menino Caio agora, aguarda para saber o formato do desconhecido. Eu também aguardo sua morte.

Não posso dizer das profundidades de meus sentimentos por esse garoto hoje em dia, que na minha memória, sempre será uma criança. Um menino.

Mas tenho um apreço forte pelo seu ensinamento na minha vida. Ele, que com seu sorriso manso e gestos inocentes de uma criança viva, me ensinou, puramente, como usar meu coração de forma mais silenciosa e verdadeira possível.

Gabi Batoni
Enviado por Gabi Batoni em 04/11/2019
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