Amor Surreal- a morte

Henri sabia que aquele era o último dia; resolveu, então, captar o mundo, as pessoas, os objetos e odores enquanto caminhava rumo a uma antiga livraria. Havia uma manifestação estudantil no centro da cidade e, ao fundo, uma voz cantava ao microfone: " vem vamos embora, esperar não é saber. Quem sabe faz a hora não espera acontecer". Enquanto o processo de respiração prosseguia, Henri sentia, constantemente, sua pele arrepiar-se; uma espécie de vertigem diante de um abismo. Sim, era um pressentimento fluídico que se anunciava, a sua própria profecia: o fim de seu romance com Juliet. Queria gravar aquele dia em sua mais profunda consciência. Como um artista que trabalha no bronze, Henri esculpia a tristeza; estava criando sua estátua de sofrimento. As árvores, os transeuntes, o mundo era apenas o plano de fundo de uma cena que aconteceria dentro de instantes. Sentia-se só em meio a uma coleção de livros velhos, ensebados de sabedoria. Comprou dois volumes chamados "Os Mandarins", de Simone de Beauvoir. Foi embora, ansioso pelos próximos acontecimentos de sua vida.

O dia estava quente. As flores mortas exalavam seu perfume, invadiam sua existência. O mundo geológico estava mudando, havia até uma reciprocidade dos vegetais com ele, como uma espécie de osmose, uma sensação de eco antropomórfico nas plantas, nas árvores; sim, elas dançavam como em Macbeth. Um eclipse iria cobrir o sol que aquecia o seu coração

Tocou a campanhia da casa de Juliet que, imediatamente, abriu a porta. Seu rosto apresentava-se desfigurado pelo cansaço e pela difícil tarefa de terminar a relação.

-- Nossa, estou cansado -- disse Henri, ofegante.

Deu-lhe um beijo em seus lábios, e soube o que era sentir o adeus ao gosto do seu batom. Sentou-se junto a Juliet no sofá.

-- Precisamos conversar -- disse Juliet, seriamente.

Henri já tinha conhecimento do assunto: ou uma cobrança com relação ao casamento, ou o término do relacionamento. Tudo muito previsível: é extremamente tedioso e enfadonho saber o que irá acontecer.

Juliet olhou para Henri durante dois eternos minutos, sem falar. Houve um silêncio sepulcral: as cortinas fechadas, vermelhas, davam ao ambiente um aspecto sanguinário de confissão. Henri percebia que ela estava elaborando a frase, pensando na maneira de começar o diálogo. Só ouvia-se a respiração cada vez mais forte de Henri; o coração já latejava e o vazio começava, sutilmente, a se instalar dentro de seu coração.

-- Henri, não ficaremos mais juntos. -- disse ela, com uma voz aguda e triste.

-- Mas por quê? -- Indagou Henri, decepcionado.

-- Porque cheguei à conclusão de que, se nos casarmos, irei fazer-te muito infeliz.

-- Mas como pode você fazer um julgamento de si mesma no futuro, sentenciando o seu ser? Nós construímos nosso futuro.

Henri há pouco tempo tinha simpatizado com a corrente filosófica chamada existencialismo, cuja principal teoria era de que "a existência governava a essência".

-- Eu sou assim, Henri. É minha natureza. Sou bruta, dessa maneira: durante todo esse tempo vivi reprimida ao seu lado, não sendo eu mesma, pois tinha medo de magoá-lo. Sei que é muito sensível.

-- Nunca a impedi de dizer o que sente. -- disse Henri, suavemente.

-- Eu sei, mas tinha receio de lhe ofender. -- disse ela, com a mão direita no coração.

Henri pensou: "é fácil, para ela, colocar a culpa em sua natureza humana: é uma forma de fugir da responsabilidade da escolha, de amenizar a culpa."

-- É mais cômodo colocar a culpa em você mesma, Juliet. É menos traumatizante. -- disse ele, determinado -- Entendo, porém, que não quer jogar a responsabilidade do término sobre mim; belo sacrifício, mas fracassado. -- finalizou ironicamente.

Houve uma intermitência no tempo, um hiato de desespero; as lágrimas começavam a aparecer. Os olhos, de repente, brilharam com o nascimento das angústias líquidas das lágrimas. Era a morte na consciência, sem tumba; perde-se para a vida o amor. O sentimento perde a velocidade. Todos os planos que Henri e Juliet elaboraram desvaneceram-se, como uma esfinge de açúcar. O filho que fantasiaram foi enterrado, assim como os projetos fracassados. Natimortas idéias, num horizonte esquecido. Todas as cenas cotidianas de jovens recém-casados, agora, estavam sendo deslizadas pela fissura do rompimento para encontrarem-se com outros sonhos, de outros casais, em alguma fonte de frustração.

Prosseguiu Henri, num tom investigativo:

-- Que "eu" é este que você reprimia? -- perguntou, desconfiado -- Seria, por acaso, seu lado sombrio, que a espreitava, que atormentava a sua paz, a fim de me fazer sofrer?

-- Este eu, -- respondeu Juliet -- se submergisse, iria te magoar muito.

-- Então este sujeito oculto vivia para jogar coisas na minha cara?

-- Não!

-- Sim! -- disse Henri, com furor --sou a causa deste rompimento.

-- É claro que não. Você é uma pessoa maravilhosa, Henri.

Henri fechou os olhos, bem devagar. Apertou-os com força e, finalmente, novas lágrimas desceram copiosamente, mas estas não eram de desalento, e sim oriundas de um trágico resultado.

-- Fiz um enorme investimento nesta relação: um investimento amoroso, um projeto de te fazer-te feliz diante de um mundo hostil e insubmisso. Fiz o possível para criar e permanecer sempre dentro de uma atmosfera de paz e aconchego. Este é o verdadeiro significado do amor -- desabafou Henri, com a face marcada pelas lágrimas.

-- Isto -- disse subitamente, Juliet -- chegou ao seu limite: eu perdi a paz e o aconchego.

-- Então este "eu", na verdade, sou eu mesmo; o seu demônio está de frente para você. -- disse Henri, com os olhos repletos de ódio e pena -- Você quer eliminar o presente, torná-lo negativo, e este presente sou eu. Quer me eliminar; esta é sua intenção. Você visa um objetivo e, para alcançá-lo, é preciso tirar-me de sua vida.

Agora, a coragem fazia-se necessária. Henri estava prestes a implodir em inúmeros fragmentos cintilantes de melancolia. Pensou numa pluralidade de coisas: na aurora, no super-homem de Nietzsche, em contigência e liberdade. Sentiu finalmente alegria na mais profunda tristeza. Está consumado.

-- Então, é o fim. -- disse Henri, olhando para baixo -- Eu... sinto-me, ao longo deste romance, como alguém que foi es... estu... estuprado emocionalmente. Entreguei-me para uma estranha durante todo este tempo... -- chorava Henri -- Fui desacreditado, desvalorizado. Estou indignado; fui traído. Enquanto vivia na verdade, você, infelizmente, perseverava na mentira.

Juliet começou a chorar também, resolutamente; eram lágrimas mais demoradas para escorrerem pelo rosto. Levantou-se e dirigiu-se para o seu quarto. Voltou, trazendo em suas mãos o porta anel de carmuça azul.

-- Já não posso ficar com isso. -- disse, suplicando, Juliet.

Henri abriu a caixa de pandora e observou o anel que havia dado a ela: a inscrição do seu nome, agora sem sentido; apenas uma circunferência de lata reluzente.

Finalmente, Henri disse:

-- Adeus, Juliet. Seu velho está indo embora. O seu "eu" pode descansar em paz.

Henri pensou, caminhando contra o vento gelado pelas as ruas vazias: "não pude ajudá-la. Não consegui chegar ao cerne de seu problema. O que fiz foi apenas cuidar dela, e ela não percebeu. Não um cuidado físico, mas espiritual. Sei que ela era muito carente de amizade; vivia muito solícita por um amigo, mas não pude ser seu amigo". Aquele rompimento, sabia Henri, era mais um fator para evoluir: mais uma metamorfose estava para nascer.

Parou no semáforo, enquanto aguardava o sinal verde. Uma jovem estudante postou-se ao seu lado, com os cabelos ao vento e olhos de esmeralda. Apenas observou-a; era uma beleza digna de ser admirada. A jovem lhe esboçou um sorriso generoso, destes bem convidativos. "Sim, sou um belo destino para qualquer mulher". A jovem desapareceu na multidão. Henri tornou-se pleno e confiante: um futuro o aguardava. "Só poderei definir-me na ação. Lembrar é sofrer. Bem que poderia sofrer uma amnésia, ou ter minha memória incubada em um iceberg". Pensou em Sheakespeare, que dizia que, para esquecer-se de um grande amor, era necessário viver outro amor; ou seja, basta apenas redirecionar o foco do sofrimento. Lembrou-se de uma frase distante; não sabia ao certo onde a havia lido. Apenas disse para si mesmo: "Agora irei em busca de novas galáxias de alegria; explorarei o espaço da minha realidade humana e serei, mais do que nunca, autêntico, por fidelidade a mim mesmo." Prosseguia caminhando, solitariamente, obteve algumas conclusões filosóficas a respeito do acontecido. Sabia, de fato, que este "eu" que ela reprimia não se escondia em alguma treva do inconsciente, pois através da fenomenologia, ele sabia que toda consciência é consciência de alguma coisa, ou seja, se amava um mulher, não era porque existia um amor a título de qualidade, e sim porque a mulher era simplesmente amável, logo, o que ela reprimia estava no exterior, no mundo, e este mundo era eu. Outra investigação que estava para concluir era de que não existe apenas um amor na vida, e sim, vários amores poderia se ter na vida de um sujeito, contanto que se vive um de cada vez. Pensou Henri mais uma vez: " O meu relacionamento era uma composição abstrata, apenas um estava em harmonia, ela não era paciente, portanto não eram amantes pacientes. Sentiu uma calma branca, expulsou tudo da consciência. Visualizou uma imagem panoica-astral de um homem de terno andando a beira da praia, com isso, ele criou um monumento para adormecer o coração sofredor. Sabia Henri, que teria que ossificar o passado prematuramente, como um elemento enigmático que não desvendou. Desejou uma simbiose com as rochas, ser duro, inquebrável e eterno. Esta era a segunda ruptura. Houve uma primeira há muito tempo, onde a família se reuniu como um "Concílio Ecumênico" para decidir se reatávamos, tudo deu então um ar de um tratado teológico do namoro; tudo desde daquele dia passou a ser microfísico. Mas deixemos de lado esta história de apenas um capítulo. Novas auroras ainda brilharão, sei que sou um atleta cósmico.

( 17/02/2006 † 24/08/2007)

Cleber Graüth
Enviado por Cleber Graüth em 05/10/2007
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