Identidade

Sinto a energia. Sinto a velocidade do passar do tempo. Sinto a constante luta entre o dia e a noite, entre a água e o fogo, entre o céu e a terra, entre os anjos e os demônios, entre tudo que compõe a heterogeneidade dos conflitos maniqueístas que me definem.

Ainda que consiga notar todo esse movimento incessante dentro da minha massa corporal, não sou capaz de me fazer ouvir os meus próprios gritos surdos de súplicas, minhas esperniaçoes de agonia apaziguadoras, não consigo enxergar nada do que está a um palmo de minha desprezível face.

A minha construção espiritual não passa apenas de restos sobrenaturais que foram amontoados para minha conceituação e assim, tornou impossível meu autorreconhecimento. Percebo o que eu sou, mas não compreendo quem ocupa essa coisa chamada pelo meu nome.

Uma das míseras e inúteis coisas que possuo conhecimento, além da guerra eterna intrínseca a minha identidade, é que não passo de um fajuto apreciador da escuridão da qual é a única que acolhe o seu verdadeiro filho.

É irônico pensar que a desgraça imortal que eu sou é tão amada por outros. Merecedores de empatia são, afinal quem escolhe por quem ilusoriamente se aproximar? Embora saiba de todo esse chorume que corre em minhas veias, minhas entranhas cerebrais fazem questão de não permitir uma mudança, dando aurora a minha pouca conhecida maldade.

Mesmo que seja todo esse aterro, um autocontrole ainda possuo em razão das lutas que me constroem, tornando-me uma balança de mim mesmo. Quem sabe, se continuar assim, permitirei a alegria alheia, mas não a minha? Mantendo, então, tudo como deve estar ainda que a cada palavra que solte durante esse tempo seja a morte de um pedaço meu, só que a morte é mais próxima daqueles que sofrem e talvez ela sinta uma real pena de mim, e me acolha no seu manto acolhedor, trazendo a empatia que sempre desejei receber.

Contudo, esqueço que a mãe do desencarnar não me reconhece, caso contrário, a volta nesse mundo não seria feita. Até o dia, aquele dia que eu não sei o que vai acontecer, mas continuo torcendo pra ele chegar, tomo ciência de que esse acúmulo depreciativo do que me rodeia, essas absorções de energias malevolentes vão transbordar desse receptáculo e meus arredores não conseguirão escapar dessa penúria que anseia o meu perecimento a fim de cair nos braços da essência aquariana que finjo possuir. O controle que tanto me impus deixará de existir, contaminarei aqueles que buscam minha ascensão, revelarei algo que repulsará todos eles e, definitivamente, saberei quem a ausência realmente é. Sucumbirei ao nada e dele me preencherei, tornando-me algo que finalmente vou entender, afinal a vida é um algo entre dois nadas e retornando ao vazio talvez eu adiciono ao meu privado mix sentimental, a sensação de lar e lá, somente lá, conseguirei me entender e gritar quem eu genuinamente sou.

matador de espectros
Enviado por matador de espectros em 26/02/2020
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