Natureza Impiedosa

ESTE TEXTO É DE MINHA AUTORIA, ESCREVO APENAS PARA INVESTIR O TEMPO QUE TENHO EM ALGO PROVEITOSO E QUEM SABE ENTRETER ALGUÉM QUE GOSTE DE HISTÓRIAS SIMPLES COMO EU.

Era começo do ano de 2016 (No povoado de Carnaúbas, zona rural do município de Aracoiaba, Ceará, como eu suponho que você já saiba caso esteja familiarizado com meus textos anteriores). Eu tinha 17 anos na época, era começinho de inverno e a caatinga já estava toda coberta de verde, salvo algumas árvores que demoravam um pouco mais para rejuvenescerem-se.

Os agricultores da região já estavam preparados para dar início ao processo de arado e posteriormente plantação das suas terras. Era mês de Fevereiro, e já fazia mais de 1 ano que eu tinha finalizado o Ensino Médio e estava em casa em uma espécie de "férias prolongadas", eu não achava de todo ruim, tinha terminado a segunda fase do ensino público básico ainda muito jovem, o que me dava um pouco mais de tempo para buscar novos rumos, fossem eles relacionados ao prolongamento convencional dos estudos ou não. Pois bem, haviam se passado alguns meses do falecimento de meu pai, e eu estava passando por um processo de mudança de paradigma de vida. Todas as tardes eu costumava sair para caminhar às vezes pelos caminhos que me levariam ao Rio Choró e às vezes pelo caminho que me levaria aos campos de plantação dos agricultores da região e ao monte Serrote. Gostava de sair para caminhar por àquelas estradas de terra pois eram praticamente desertas, raramente alguém andava por elas durante a tarde, ou seja, a chance de esbarrar com alguém que fosse atrapalhar minha reflexão, minha paz e meu silêncio era praticamente zero.

Naquela dia de Fevereiro, havia chovido pela manhã. Chuva forte e com ventanias que dobravam os galhos das árvores. A chuva levantava um bafo e um cheiro peculiar da terra, como se o solo seco tivesse voltado à vida com as chuvas e aquela fosse a sua respiração. Cheiro de vida. Mas se a manhã foi de chuva, a tarde foi de sol. No nordeste algo muito comum. Por volta das 15 horas da tarde, eu tinha decidido que iria fazer uma caminhada até o rio, uma caminhada que levava em torno de 10 minutos para ir da minha casa até o rio e 10 para voltar, às 15 horas e mais 30 minutos, falei para a minha mãe que iria caminhar, e logo voltaria, minha mãe já estava acostumada com meus hábitos um tanto quanto excêntricos se comparados aos padrões habituais dos moradores do campo. Então parti. Sempre quando gostaria de ir ao rio, pegava um atalho que ficava em frente à minha casa e que me deixava já quase na metade da estrada de terra principal que levava ao Rio Choró.

A estrada principal do rio choró era ladeada por cercas de arame farpado e possuía uma arborização natural em ambos os lados: A folclórica caatinga cearense. Eram momentos de paz aqueles em que eu caminhava por aquela estrada. Chegando no rio, que apesar de estar com água corrente, estava com uma quantidade de água muito pequena, que equivalia a quantidade de água de um riacho de pequeno porte, mas em breve, como em toda época de inverno, ele ficaria cheio e com correntezas ferozes. Mas como naquele dia ele estava com uma pequena quantidade de água, (a corrente de água tinha mais ou menos uns 3 metros de largura, e o rio tinha no mínimo uns 15 metros de largura) resolvi andar um pouco dentro do rio, caminhando pela parte arenosa que ainda não continha água, na direção que a correnteza fluía. Permitam-me descrever um pouco do Rio Choró, nas suas barreiras laterais, haviam vários tipos de árvore, incluindo Mutanbeiras, Paus-Brancos, Sabiás, cajueiros e muito mais. Além de muita vegetação rasteira.

Em alguns pontos haviam muitas rochas, dentro do próprio rio.

Cheguei em um ponto que era peculiar, pois ali havia uma espécie de "ilha", um local onde a vegetação tinha crescido junto com algumas árvores, fazendo com que o rio se dividisse em "dois" apenas para voltar ao normal 15 metros depois. Após passar por este local. Já estava preparando-me para voltar, quando escutei um barulho estranho vindo da minha direita.

Ou seria apenas uma "visagem" das quais meu avô tanto falava? Não perdi tempo e me aproximei da barreira à direita que margeava o rio, ouvi mais uma vez o barulho que já havia escutado antes, e nesta segunda vez... Identifiquei o que era. Era um barulho de um animal ainda bebê, um gato, raposa ou alguma coisa do tipo. Sabia disso porque em minha casa haviam alguns gatos e mais de uma vez vi as gatas trazerem para casa seus filhotinhos os quais ela dava luz no mato.

Na barreira havia um pé de mangueira, e seu tronco tinha um oco bem onde o tronco se encontrava com o solo, onde começavam as raízes. Me aproximei, subi na barreira e olhei dentro do buraco... Um punhado de filhotes de cachorro. Todos pequeninos, roliços e barulhentos. Com certa dificuldade, pois o buraco era bastante escuro, consegui contar 7 filhotes, não aparentavam ter saido há muito tempo da barriga da sua mamãe. Fiquei maravilhado. Logo conectei tudo: a árvore era um bom local por conta da sombra, e o oco servia de abrigo para os filhotes caso chovesse. Cadela esperta.

A maioria deles tinha o pelo claro com leves tons escuros que variavam em cada um deles. Havia dois com a pelagem mais escura, um tipo de tom amarronzado. Um espetáculo da vida. De vez em quando nos deparamos com coisas verdadeiramente extraordinárias.

Não quis mexer nos filhotes. Eram uns danados, um puxava o rabinho do irmão, o outro estatalava-se sobre outro filhotinho, e apenas um deles estava completamente adormecido. Era uma ninhada bonita. Não sabia quantos machos e fêmeas haviam entre os sete, para saber teria de retirar um por um de lá de dentro, e eu não queria mexer nos filhotes. Pouco tempo depois a mãe deles chegou, um pouco desconfiada, me encarando com um misto de apreensão e medo. Prudência instintiva. Era uma cadelinha vira-lata extremamente mirrada, provavelmente sem dono. Mas uma mãe dedicada. Fisicamente ela não tinha nada de especial, era uma cadela normal.

Então fiquei meditando sobre toda aquela cena, os filhotinhos dentro do oco do pé de mangueira, a cadela me espiando de longe. Senti uma empatia incomensurável por aquela família recém formada... Mas eu não podia fazer nada. O que mais se via na nossa região eram filhotes de cachorro perambulando perdidos, abandonados, pois haviam várias cadelas sem dono e não raramente elas ficavam prenhas, sem a casa de um dono para recorrer, os destino dos seus filhotes não era nada fácil.

Baixei a cabeça, depois ergui os olhos para o pé de mangueira, e senti o vento no rosto, vento que balançava as folhas da árvore que acolheu aquela ninhada, o sol começava a se pôr atrás de mim, o crepúsculo brilhava, me senti impotente. Já passava das 5 da tarde, e eu tinha que partir, desci da barreira, olhei mais uma última vez para o oco da árvore, e fui me afastando. A mãe dos filhotes foi se aproximando do oco e adentrou para dentro do seu lar, foi provavelmente aconchegar os seus filhos e alimentá-los. E eu parti. Ao chegar em casa percebi que havia um temporal se formando, vinha chuva. Fiquei me perguntando se os filhotes estariam realmente a salvo naquele buraco. Talvez para a mãe deles, sim. Entretanto, não era bem isso. Choveu torrencialmente. As biqueiras muito úteis para capitar água da chuva e levá-las aos canos e cisternas, rangiam. Raios iluminavam a noite. No outro dia, a manhã inteira foi de chuva. E à tarde, ficamos sabendo que o rio tinha ficado cheio e para atravessá-lo apenas à nado. A nascente do rio choró fica em outro município, então não se sabe ao certo quando ele aumentará seu fluxo de água ao seu máximo. E os filhotes? Me perguntei. Será teriam conseguido escapar? Sozinhos com certeza não, eram recém nascidos, eram completamente dependentes da sua mãe. À menos que ela tivesse pegado um por um e os levado para um lugar alto, Aqueles bebês teriam sido tragados pelo furor impiedoso, indiferente e inesperado da natureza. A mesma natureza a qual eu e eles pertencíamos. O rio demorou semanas até baixar seu nível de água, dava para escutar o seu ronco à noite quando suas correntezas colidiam com as rochas que também faziam parte dele. E aquela tarde de fevereiro foi a única e última vez que vi os 7 filhotes e sua mãe. Não sei dizer se conseguiram escapar. Espero que sim.

Costa Joel
Enviado por Costa Joel em 21/05/2020
Reeditado em 21/05/2020
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