ESTUDOS DO PENSAR (Série Folcórica Memória) ROBERTA

“(...) TUDO JUNTO E MISTURADO (...)”?

Sim, somos “tudo junto e misturado”, unido, desmembrado, transgredido conscienciosamente ou não, por algo que não se ata e nem desata do que realmente nos propomos ser, dizer e fazer. Fato e ato que muitas vezes nos pega de surpresa e nos deixa à deriva do surgimento de um amarelecido sorriso ocasionado pelo flagrante e delicioso ato falho que é o improviso da vida, diante todo caminho percorrido pela humanidade em seu contexto cultural. Somos habitantes e habitados nesse universo de signos e significados, num casamento mais que perfeito com tudo aquilo que humanamente julgamos irreal, mas que por tal e tanto uso nem sequer nos damos conta que nossa escola ancestral sobrevive em tudo o que somos, dizemos e fazemos, é o nosso eterno legado herdado e deixado aos próximos como legado do fazer de conta.

CONTA?

Sim, essa conta de que até mesmo quem não conta um conto, transborda saberes na tessitura de seu bordado interior. Feito vida, aumenta o ponto dessa tresloucada fábrica de inventividade folclórica que é o lado mais delicioso e inadmitidamente intrínseco em tudo o que somos, mas devido à pressa dos dias que ainda nem chegaram deixamos de lado. Subversivamente nossa herança cultural ancestral se abastece a cada segundo naquilo tudo que depositamos em nossas vidas, diuturna e incansavelmente ela jamais é esquecida, mas deveras é relegada a não comprovação no reino de pseudos sábios instituídos pela lei humana. Ah! Essas mesmas instituições que se perdem quando suas verdades conceituais tendem alçar voos surreais e sair do chão. A lei humana ainda não exerce na cultura ancestral o usual domínio dos saberes oficiais, pois ainda não acessa a dimensão dos não saberes, ata-se em teias mentais estruturadas cartesianamente por não considerarem real o que há de mais humano em nós.

NÓS?

Sim, nesses nós, um coletivo existe sem que possamos atê-lo aos fios da cronologia humana, pois somos pequenos espaços conectados e concebidos com periodicidade limitada no plano físico. A nós os nós... e desatá-los por hora não nos é devido, pois estamos a eles tão inseridos e ensimesmados que ousar maior compreensão desse todo é trazer tais registros a um campo de ideias limitadas pelo território do status que estamos condicionados e vivemos. O que nos resta é talvez, numa ousadia quase insana, prover-nos da volúpia de trazer ao cotidiano, a manifestação da vontade daquilo que por hora não dominamos. Mas é impossível deter esse processo tão intimamente atrelado a nós, e que urdimos naquilo tudo que somos e sem que possamos exercer quaisquer formas domínios, inserimos de forma inconsciente em nossa diária lida.

LIDA?

Sim, lidamos com uma rede social complexa com questões que permeiam o lúdico, o mítico, as vontades, o educar, os pensamentos, os atos, as palavras, as ações, tateando por sobre nosso corpo num apalpar de ideias que nos dão forma, e a ruptura desta rede é impossibilitada pelas ramificações que somos submetidos, podemos sim abastecer-nos da óbvia constatação de que tudo é conectado não tão somente de forma virtual, mas como se vestíssemos formas de diferenciadas culturas, somos por assim dizer essa miscigenada criatura. Não nos damos tempo para reflexões profundas, a vida nos dias de hoje urge no tempo, feito tatuagem na superficialidade humana. Os desejos são realizáveis se os mesmos tiverem o propósito da manutenção dessa irreflexão implantada e cultivada em nós, desavisados seres ainda providos do ato e da potencia do pensar e agir. Abastecer nessas fontes turvas é deixar vir à tona não a essência, mas a incoerência de se considerar sábio o suficiente para manter-se domínio às formas, sem perceber que na verdade o inverso é o que ocorre. O risco mortal no final de cada ponto, a cada cerzimento ou remendo dado à vida, é talvez para alguns, cruel percepção de que a forma jamais será abarcada, transgredida, domesticada, formatada, pois simplesmente o é essência, e que sábia e pacientemente é fibra urdida com percepção e compromisso diferenciados e que tem o dom de saber da riqueza do exercício de paciência da espera.

ESPERA?

Sim, a espera é algo que dá-nos certeza de uma nova natividade para a tradição com raiz engendrada e matizada no folclore, sobrevive diante as muitas e diversificadas manifestações culturais existentes, entre elas a de cultura popular, sua irmã. Os saberes tradicionais e nem sempre evidenciado na academia, nos alertam que devemos reverenciar quem nos antecedeu e tudo que transmitiu, e jamais tentar normatizar o que se é livre, pois sua independência é fortalecida pela sua forma atemporal, metafísica e que lhe abastece de anima para tornar-se conteúdo, massa, corpo, forma, e acima de tudo ter sua manutenção na crença daqueles que a mantém resistente e residente no nicho que habita. Jamais nos esqueçamos de cada unidade que compõe a diversidade nesse “tudo junto e misturado.

“TUDO JUNTO E MISTURADO”?

Sim, esse maneirismo de “tudo junto e misturado” surge também da necessidade de resistência da força vital de uma tradição e do desvelar a consciência de que a manifestação cultural de um povo e que muitos chamam tradição, merece respeito a ser dado através do vir, a saber, o que é realmente esse termo, como ela, a tradição, se torna representante de todo um complexo mítico através do desenvolvimento do folclore local e sendo absorvida nos usos e costumes da cultura popular, e com sua existência apaixonante, torna-se produto de consumo de cunho acadêmico, e muitas academias sequer detém compreensão, pois sequer percebe-se pertencente a ela. Por isso a necessidade do educador se perceber inserido neste contexto para que possa transmitir com efetiva paixão, essa percepção para aqueles que têm como educando. Quando não só percebermos, mas assumirmos sermos seres de tradição manifesta; note que não me referi a mestres da tradição, pois esses são dádivas à parte; então teremos um olhar mais amplo, profundo, respeitoso e dignificante a todos os que fazem parte desse ciclo de vida humana, que pela sua excelência sapiente transforma-nos em seres culturais e de tradição; saber transmitir tal riqueza ancestral é trazer à tona uma faísca de esperança de que nossos jovens possam sim ser a continuidade daquilo tudo que construiu sua história.

ALGUMAS REFERENCIAS:

BARTHES, Rolland, Aula, 11ª edição, tradução e posfácio Leila Perrone-Moisés, São Paulo, editora Cultrix, 1978.

CARRADORE, Hugo Pedro, Digressões em Torno do Folclore, Editora Franciscana, 1978.

ELIADE, Mircea, Mito e Realidade, tradução Pola Civelli, São Paulo, editora Perspectiva, 1972.

PELEGRINI Filho, Américo, Folclore Paulista, coleção Calendário & Documentário, 2ª edição, São Paulo, editora Cortez, Secretaria do Estado e Cultura, 1985.

Roberta Lessa
Enviado por Roberta Lessa em 10/06/2020
Código do texto: T6972998
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