Distraídos

Acordamos. Mal abrimos os olhos e já estamos colocando os pés no chão. Abrimos a torneira. Deixamos a água tocar nossa pele, limpar-nos, despertar-nos. Vestimos a roupa de costume. Engolimos o café. Corremos até o carro com bolsas e envelopes. Giramos a chave. Brigamos com o semáforo que nunca abre, xingamos o motorista que virou sem sinalizar, reclamamos dos pedestres que esperam por uma brecha para correrem desesperados sobre a faixa que os protege. Dispensamos “bons dias” quase inaudíveis. Sentamo-nos na nossa mesa ou nos posicionamos atrás de nossa máquina. Começa mais um dia de trabalho. As horas se passam. Voltamos para casa. Jogamos os sapatos num canto qualquer. Tornamos a sentir o toque da água. Procuramos algo rápido e prático na geladeira, ou simplesmente pegamos o telefone. Comemos. Deslizamos os dedos sobre aquela tela brilhante e sedutora. Coçamos os olhos. Abrimos a boca. O corpo implora para deitar. Os olhos finalmente se fecham. O sono nos envolve até que o despertador toque outra vez e nossos passos se repitam.

Essa tem sido a vida de muitos de nós, da grande maioria de nós. Uma vida automática, sem a emoção da novidade, sem a ansiedade do desconhecido. Uma vida de rotinas, padrões e previsões. Uma vida rigidamente programada, pensada, que não tolera mudanças no percurso, que não sabe como reagir quando somos obrigados a improvisar visto que o universo não é assim tão previsível, ele prega surpresas nos momentos mais inoportunos. Uma vida que não é vista, ouvida ou sentida. Uma vida que não concede tempo para pensar, sorrir ou desejar. Uma vida desperdiçada.

É a vida que temos levado. Uma vida de correrias, de falta de tempo, falta de interesse pelos outros, falta de amor por nós mesmos. Passamos nossos dias numa mesmice entediante, nosso único entretenimento tem sido ver a vida glamourosa de pessoas que nem sabemos se são como as fotos mostram. Estamos distraídos com obrigações e mais obrigações, não percebemos a vida passar, não vemos nossos filhos crescer, não acompanhamos o desenvolvimento de nossos vizinhos, nem nos damos conta das rugas que começam a aparecer em nosso rosto e dos cabelos que perdem sua cor. Estamos tão distraídos com o trivial que talvez nem sabemos mais como é se aventurar numa noite estrelada procurando por constelações no céu. Ou então nem nos lembramos de qual seja o perfume de uma rosa, a robustez de uma árvore, o som do canto dos pássaros. Estamos tão automatizados que a vida tem passado e nós continuamos no mesmo ponto de imaturidade e miséria pessoais.

Precisamos despertar para o que importa. Precisamos valorizar o efêmero tempo que a vida nos proporciona. Temos somente uma chance. Não podemos desperdiçar nem uma gota distraídos com vitrines falaciosas, enquanto temos quadros maravilhosos a pintar. Precisamos nos lembrar do que nos fazia felizes, de quais eram os sonhos que nos faziam ter esperança, de quais projetos construímos quando éramos tão pequenos e pensávamos na grandeza de tudo o que poderíamos conquistar conforme os anos se passassem. E não estou falando apenas de coisas materiais. Falo dos amores que deixamos de cultivar, das amizades que deixamos de firmar, da solidariedade que não exercemos e da fraternidade que simplesmente desprezamos. A vida tem passado ligeiramente, mas estamos estagnados em nossa pequenez dando atenção e investindo esforços em coisas que em nada nos enriquecem. Um dia o amanhã não existirá e aí perceberemos o erro que cometemos.

(Texto de @Amilton.Jnior)