1.
Um filho é o centro do mundo dos seus pais e a vida passa célere na vontade de lhe dedicar os altares possíveis.
O normal sobrevirá dos erros sucessivos e o filho bate na mãe, o pai ri-se e já nem se consegue ver o boxe na paz do senhor.

2.
A santa paciência talvez nem fosse um predicado de Jesus se vivesse nos dias de hoje.
Como o latim e o aramaico, ser-se santo é uma espécie de predicado morto e é ver os infindáveis herdeiros de Pilatos.

3.
O motim deu-se por um motivo colateral.
As pessoas na sua tensa relação com a corrupção total que as rodeia teimam em gastar as suas energias de uma forma destrutiva como se quisessem optar pelo suicídio em massa.

4.
Quando entram pela primeira vez num carro estão nervosos, como se o diabo os estivesse a condenar por algo que, eles no fundo sabem, virão a ser, um elemento de qualquer negra percentagem em que os heróis saem ilesos.

5.
Ao tentar levar a vida longe dos crucifixos, véus ou símbolos de qualquer espécie tornas-te um ser raro que urge reeducar, sob pena de um dias pores em prática os teus pensamentos de vida normal.

6.
A rotina é sempre motivo de depressão.
Quando a tens sob a forma de família e trabalho, queixas-te e queres férias. Quando a tens sob a forma de solidão, apenas devias pensar que os desertos têm sempre um Oásis.

7.
Sublimar as viagens pelo abismo rotineiro da solidão e permitir o desgaste prematuro de um corpo já de si condenado a desaparecer.
Urge obliterar da vida essa manta espessa feita de morte e esquecimento.

8.
Se de hoje em diante não fosse necessário conter mais as emoções, fingir as tentações e fugir à vida rotineira que se abate como um castigo, talvez o mundo se libertasse do veneno que depressa o corrói.

9.
Dizer adeus é como encerrar um capítulo de vidas que deixam de se cruzar passando ao domínio das memórias e dos motivos infâmes da especulação.
E o mundo gira algo torto e desengonçado.

10.
As viagens sucedem-se, as línguas alteram-se e no fundo do caminho está guardado um qualquer pedaço que pensamos ser uma poção mágica que tudo mudará.
Apenas mais do mesmo e nem a depressão tem cor diferente.

11.
Via-os puxarem de um cigarro que compartilhavam com ar grave e afectado. Mais parecia uma mera provocação às beatas que se passeavam com o Apocalipse para quem deixasse o dinheiro a salvo.

12.
Sem receber a atenção devida, os dias sucediam-se como uma nuvem negra que teimava em tapar o topo da montanha. Havia momentos em que apetecia  ser apenas um átomo no horizonte.

13.
Algo de diferente devia surgir apenas para que quando fosse à sua campa as mãos não se cansassem das flores que apenas se tornariam novo peso morto.
A vida inteira seria uma rotina fastidiosa de metódicas batidas do coração.

14.
A respiração tornara-se irregular e os pés eram tomados por um crescente formigueiro que lhe causaria mal-estar. Depois sobreviriam as dores estratégicas que, devidamente ostracizadas, levariam a um fulminante ataque cardíaco.

15.
O movimento das águas parecia ser mais tranquilo, como se as coisas vistas de longe tivessem um sabor mais agradável e os sonhos se permitissem levantar voo sem sequer pensar que a rotina alguma vez se imporia.

16.
Sentados na esplanada unimos as mãos, brancas e negras, como se a vontade de amar alguma vez pudesse ser regida por cores ou nacionalidades.
Ignoramos a indecente tentação de racismo latente à nossa volta.

17.
Como serão as noites quando as articulações empenarem e o conserto se tornar insuportável. Importa-me tanto como aqueles seres que se apropriam de uma estupidez arrogante e a transformam em estilo de vida.

18.
Sabe bem ter uma rotina em que o corpo se canse ainda mais que a alma. Seja de sexo ou da mera satisfação de ver alguém feliz e a sorrir.
É preciso e precioso que continuemos a amar a vida.

28/12/2008
 
Manuel Marques
Enviado por Manuel Marques em 01/11/2020
Código do texto: T7101665
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