Condutora
 
              Condutora
 
            Nem pensei em você antes de dormir ou durante o dia de ontem, nem houve qualquer menção que pudesse trazer à tona aquele recorte da minha vida em que você fez parte dela. E eis que no meu sonho você apareceu.
          Costumava ser deveras doloroso falar sobre aquela época porque me atenho ao princípio de que só evoluirei se me demonstrar capaz de perdoar, independentemente de buscar “culpados” na história. Porque não me propus a escrever para discorrer em longas linhas acerca de uma trama em que início e fim nunca ficaram claros porque datas delimitam os fatos, mas pelas entrelinhas as reticências foram mais solenes.
            Era um sonho consciente. Eu sabia que era eu, que não estava vendo personagens interagirem entre si. Éramos nós. Nosso contato havia sido retomado. Não havia dor nem ressentimento. Os efeitos do tempo não haviam apagado as impressões iniciais. Não haviam quaisquer desencontros, eram páginas viradas porque não haviam acusações a serem levantadas, nem mágoas contidas, prontas para desaguarem no primeiro rompante de raiva, onde palavras ásperas castigariam tanto quanto a ausência. Haviam duas pessoas maduras e dispostas a viver algo verdadeiro. Havia consentimento.
            Fizemos amor. Seu corpo pesou sobre o meu. Seu toque ficou grudado na minha pele. E havia leveza em cada ato.
            Seu apartamento era totalmente iluminado, diferente daquele em que entrei, onde não encontrei um só indício da sua personalidade, tão escuro, tão apertado, tão impessoal. Havia dezenas de papeis pelo chão, entretanto, a luz sobrepujava a bagunça do cômodo principal, a claridade que caminha de mãos dadas com dois elementos bastante significativos. A bagunça não me aborrecia porque de alguma forma aquelas folhas todas mostravam aquilo que antes eu não pude ver.
            Eu era a condutora do carro que conduzia a algum lugar, não sei onde. E você sorria. E queria me apresentar ao seu pai, aquele senhor de cabelos brancos que me sorriu no banco do passageiro. Essa atitude evidenciava o quanto gostaria de me mostrar ao mundo, de dizer que o motivo de seus olhos sorrirem era eu. E isso me tocou sobremaneira. Toda mulher gosta de se sentir desejada, única, importante, amada. Ninguém quer ser segunda opção, estepe emocional, prêmio de consolação. Antes uma cama vazia a aceitar um papel medíocre apenas por medo de ser solteira. Particularmente, não recomendo.
Na vida real, tudo aconteceu ao contrário: nossos encontros sempre foram clandestinos, em dias, horários e lugares atípicos, parecíamos dois adolescentes matando aulas, transgredindo regras, excitados pelo perigo, mas temerosos da punição, desejosos por mais e ao mesmo tempo contidos. Meus conhecimentos sobre você são superficiais, eu era a passageira e por mais que falasse, aquelas palavras mais difíceis de serem ditas de viva-voz foram refreadas pelo orgulho.
          A princípio tem-se a impressão de que “menos é mais”. Sim, falar pelos cotovelos não abre precedentes para a outra parte dialogar e quando busco a presença de outro ser humano é porque me interessa mais ouvir. Entretanto, calar, enquanto atitude prudente para não pecar pelo excesso, cobra pela ausência. O outro não possui meios de adivinhar o que se passa se nada for verbalizado.
            Foi apenas um sonho, foi. E está tudo bem. Sentar-me, abrir um documento e registrar esse sonho para ele não ser esquecido dentre tantos outros é um passo significativo, sim. Eu não odeio você, nem teria por que nutrir qualquer sentimento negativo pela sua pessoa.
          Numa das últimas mensagens de e-mails que trocamos você me disse que sempre me amaria como uma irmã, que eu era uma grande amiga e não ficaríamos juntos “por causa do destino” porque havia escolhido outra pessoa e não queria magoá-la, porém com os meus botões decidi me afastar de você antes de me entristecer mais porque foram longos meses de espera desde o nosso último encontro até aquela mensagem e eu precisei do seu amor, justamente quando seu abraço se fez necessário, eu só tinha o vazio à minha volta e dessa falta de notícias, sinais, de qualquer esperança, o ressentimento encontrou raízes para brotar.
          Eu gostaria que você tivesse entendido que aquela era minha primeira experiência sexual e que minha real vontade era esperar um pouco mais para que pudéssemos nos conhecer melhor, dessa forma a situação teria acontecido com mais naturalidade. Eu me entregaria sem reservas se você sinalizasse alimentar por mim algo além de desejo.
          Eu queria confiar. E a confiança não se constrói com quaisquer materiais, nem de uma hora para a outra. Conquista-se. Para perde-la leva apenas alguns segundos. Para nunca mais. Para haver sempre uma rachadura naquela estrutura, uma feridinha a mais na alma, o medo de acreditar novamente, de não saber o que sentir, o que esperar, o que é mentira ou verdade.
          Entregar meu corpo para compartilhar o mesmo espaço que o seu era o de menos em questão, confiar o coração a você era mais emblemático para mim, aquele sentimento que eu tentava entender era valioso. Eu não escolhi gostar de você, simplesmente num dia dei-me conta de que te via de um jeito diferente e até reunir coragem para te conhecer a ponto de chegarmos a trocar mensagens, travei um embate direto com a timidez.
          Você era diferente de todas as pessoas de quem eu tinha gostado até então, porém um passarinho azul me contou que você me admirava como se eu fosse a oitava maravilha do mundo, falava de mim com um brilho singular no olhar, sem sequer disfarçar o contentamento e então eu passei do status de invisível para gostável. E você não era boçal, aquele tipo com quem eu jamais gostaria de ser vista. Enxerguei as virtudes que você tem, diferentemente de algo platônico, onde crio o ser perfeito, que de tão perfeito, meu não pode ser, porque não se namora sonho, cedo ou tarde a realidade cobra a conta.
          Até você me mostrar que não havia nada de anormal na minha aparência nem na minha conversa, eu achava que ninguém nunca iria se interessar por mim. Se você gostou do meu jeito meio estranho de ser é porque muitas pessoas poderão gostar. Eu quero ser bonita aos olhos de quem me enxergue com amor. Eu quero ter uma alma iluminada.
          Um adendo antes de prosseguir: ouvi num vídeo que muitas vezes aquilo que alguém tratou como um defeito pode ser justamente o que outra pessoa vai enxergar como virtude. Neste exato momento existe alguém orando para conhecer alguém como você, como eu, como quem lerá esse texto.
          Foram efêmeros os nossos momentos, depende da percepção que se tem sobre eles. Contados pelos ponteiros do relógio, sim. Psicologicamente, não. A amplitude cabe mais ao contexto. E depois de silenciosas, mas intensas partilhas, o silêncio consome aos poucos todas as entranhas da paciência. Porque dias se emendaram em semanas e quando me dei conta já haviam se passado oito meses. Oito meses. E eu ainda lutava para passar um dia inteiro sem chorar.
          Você contou que se afastou por pensar que me fazia mais mal do que bem, mas não era verdade. Naquela época eu conversava mais com você do que com qualquer um dos meus amigos. Quando a frequência das mensagens se tornou irregular, meu coração queimava de dor, eu não sabia o que tinha feito de tão errado e posto que fiz dos nossos encontros um segredo até certa altura, remoer as perguntas sem respostas eram minha rotina em conluio com os dias nublados.
          Embora ainda fosse cedo para pensar em firmar algo definitivo demais, você comentou que “se pudesse, queria morar comigo”, repetir aquele dia outras vezes, mas argumentou que seria cada vez mais complicado encontrar um encaixe para nossos passeios e agora compreendo que em plantão constante, revezando em dois empregos, dedicando-se ao mestrado, era difícil de me prometer algo que não fosse possível de se cumprir. E de promessas furadas eu já me fartei.
          Se foi por essa razão que você preferiu me libertar, por não poder me dar o amor que eu merecia, te agradeço, mas se você desejava ficar comigo porque sentia amor e queria cuidar de mim, me acarinhar, me proteger, naquela época eu aceitaria a porção de tempo que estivesse disponível, nunca exigi presentes caros, nunca fiz questão de ostentar nada, um abraço sempre foi mais valoroso.
          Se você não ficou comigo por medo, eu posso te entender, de todo o coração, porque eu também não saberia administrar as emoções se um sentimento muito forte me acometesse e estando na sua pele, só estando nela, eu atinaria suas motivações. Do contrário, é te julgar como se eu fosse perfeita, sendo que não sou.
          Você não está mais com ela, mas duvido que esteja só, a essas alturas devo ser apenas uma pessoa qualquer que passou pela sua vida e tudo bem também, não me considero o centro do universo para exigir que você se lembre, porém espero que o medo de ser feliz, mesmo que implique se arriscar um pouquinho, não te impeça de viver em plenitude um sentimento que tem tudo para te fazer uma pessoa melhor. Porque o verdadeiro amor tem esse poder.
          Agradeço a sua passagem pela minha vida por conta das lições deixadas e também pelos momentos de carinho, você me ensinou tanto. Espero ter te ensinado algo também, como também anseio não ser uma má recordação.
          Esse sonho foi aleatório, não premonitório, mas seria interessante experimentar a sensação de como a vida poderia ter sido se nossa amizade tivesse se transformado num relacionamento sério. Saber, eu nunca saberei. Levantar conjecturas eu poderia, mas aprecio mais as histórias que se desenvolvem naturalmente, quando o sentimento cresce e dois corações se aproximam porque transbordam de amor. Detesto forçar situações. O destino também surpreende positivamente.
          Rasguei o diário para não cair na tentação de reler aquelas páginas todas, mas não existe nenhum método para ir até a pastinha de memórias lá no cérebro, encontrar a fase que procuro e deletar. Porque não é tão simples. Não quando há marcas impossíveis de serem apagadas. No computador é fácil excluir arquivos, eu apaguei alguns poemas e textos que fiz a você, dos mais esperançosos aos raivosos. A revolta foi aquele escudo que me protegeu de machucar meus joelhos porque eu já não tinha mais forças para permanecer de pé, era um bom pretexto para te esquecer e não mais contar o tempo entre uma mensagem e outra.
          Nem tudo que escrevi naquela carta foi verdadeiro. A decisão de ir embora da sua vida foi a única que encontrei diante da situação apresentada: não havia futuro para nós, somente a indulgência do tempo para conduzir cada qual ao seu destino. Quanto a desejar sua felicidade não foi mentira, mas reli a mensagem, acredite quando afirmo que minha percepção das coisas se alterou ao longo desses cinco anos e eu pensaria duas, três ou mais vezes antes de enviar aquele e-mail.
          Enquanto escrevo e o sonho vem em flashback volta e meia, fazendo o estômago dar cambalhotas, quero acreditar que quando você me pediu um beijo é porque já havia meses que aquele desejo incontrolável te movia, que quando você desafivelou o cinto e me abraçou como se fosse desabar nos meus ombros era a prova clara de que você não queria estar em nenhum outro lugar nem com ninguém que não fosse eu. Espero que quando nossos lábios tenham se tocado, o ato não tenha sido banal, que tenha sido o meu gosto que você queria sentir e que quando beijava e acarinhava cada pedacinho de mim é porque “era todo meu”, não se tratava de uma expressão proferida antes de atingir o clímax, mas o mais próximo de “eu te amo” que seu orgulho te permitia dizer.
          EU-TE-AMO.
          Milhares de meios de demonstrar o afeto, cada qual com o seu método, desde que seja sincero, não importa. Amar nunca será um erro, compartilhar amor tampouco, mas mendigar de quem só pretende te ferir é perda de tempo. Para uma pessoa ser condutora da própria vida, se dispõe a aprender a dura lição de não delegar sua felicidade a mais ninguém que não a si mesma.
          Estou rumando esse caminho. Cada passo de cada vez, seguindo o meu ritmo, às vezes mais lento, às vezes mais rápido. Estou rumando para ser a condutora da minha vida. Menos peso na bagagem, mais espaço para aprender. Menos desejo de controlar tudo, mais maturidade para entender o que cada momento deseja me ensinar.
          E está tudo bem terminar por aqui. O ponto final é a prova de que entrarei no próximo ano (caso sobreviva ao que resta de 2020 porque, definitivamente, ele não é para amadores) certa de que tomei boas decisões, animada com a perspectiva de que posso viver um sonho de olhos abertos com um amor, um amor que venha para ficar.
 
 
               
Marisol Luz (Mary)
Enviado por Marisol Luz (Mary) em 11/12/2020
Reeditado em 11/12/2020
Código do texto: T7133427
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