COMPLEXO DE CACHORRO VIRA-LATA

Por Mércio Gomes.


Um recente e breve debate sobre a cerimônia do Oscar, que é a apoteose do marketing cultural americano, leva-me agora a apresentar duas seções do Capítulo I, intitulado, “Moral eu tenho, o que me confunde é a ética”, do meu livro O Brasil Inevitável.

Essas duas brevíssimas seções do capítulo tratam de uma espécie de carência brasileira por autoestima. Não é absolutamente grave, mas tem aspectos que precisam ser postos em discussão para que se entenda melhor as consequências desse dois pequenos pecados veniais.
 
O complexo de cachorro vira-lata

Essa expressão foi criada pelo dramaturgo, cronista de costumes e jornalista esportivo Nelson Rodrigues, em meados do século passado, quando o Brasil perdeu a Copa do Mundo de 1950 e continuou a perder no futebol como se tivesse medo de se impor perante os adversários – especialmente a Argentina. Significa, em lato sensu, que o brasileiro é um ser com baixa autoestima, que treme nas competições, que está sempre depreciando a cultura, a economia, a inteligência e a moral nacionais.

Em contrapartida, admira desavergonhadamente tudo o que vem de fora como estando acima de qualquer comparação com o Brasil. Para esses espíritos, só com nossas propaladas falhas como a sem-vergonhice, a incompetência, a malandragem etc. ganharíamos das falhas dos gringos. Exceção para a beleza feminina e para a riqueza da nossa natureza.
 
É possível que doença acometa qualquer
país que não alcançou autonomia cultural
 
O vira-latismo brasileiro às vezes é sacudido quando um gringo diz que “adora” nosso país, que nossa cultura é fabulosa e que somos um povo alegre e generoso. Emerge então um sentimento acabrunhado de autopiedade, que nasce do próprio vira-latismo, agora disfarçado em um desafortunado provincianismo. Colocamo-nos de novo como coloniais diante dos emissários do rei e somos compungidos a tentar agradar mais ainda quem nos elogia. Oh, céus!

É possível que o vira-latismo seja uma doença que acomete qualquer país colonizado que não alcançou uma autonomia cultural, por não deter uma autonomia econômica. Seríamos então como os mexicanos e os chilenos, talvez um pouco mais vira-latas que os altivos hermanos, mas estaríamos longe dos confiantes canadenses, por sua vez, sempre depreciados pelos americanos. Talvez tenhamos herdado uma parte dessa maladia de Portugal que, depois de um breve surto de grandeza, tornou-se um país ensimesmado e esclerosado, sobretudo desde que perdeu a sua principal colônia.

O vira-latismo nos chateia porque nos puxa para baixo, nos enfraquece a vontade, a ambição e a inteligência, nos junta na mediocridade autoirônica. Gozamos de nós mesmos por não sermos cachorros raceados. Grande parte do nosso humorismo advém desse sentimento. Aliás, dizem que o humor judeu também é autoirônico e autodeprecante, embora o vira-latismo esteja longe dele.
 
A dependência da aprovação exterior
tanto como consequência quanto como paralelismo ao vira-latismo está a nossa famigerada dependência da aprovação exterior para qualquer coisa que façamos e que consideremos de boa qualidade. Como um colonial envergonhado, nossa primordial atitude diante de um estrangeiro em nosso país é tentar agradá-lo para ver se ele nos aprecia de algum modo, mesmo que tal apreciação seja demonstrada de um modo frio. Um dos motes, pensamos, para agradá-lo, é falar mal de nós mesmos. Isto é consequência direta do vira-latismo.

Tudo bem, mas como não depender da aprovação exterior? Afinal, temos de exportar nosso açúcar, nosso café, nossa carne, nossos minerais e até nossas quinquilharias industriais maquiladas. Para tanto, os estrangeiros têm de nos aprovar em tudo.

Aliás, a exigência dos gringos até faz nosso produto melhorar e assim entramos mais facilmente nas esteiras da produção econômica eficiente. Para comprar nosso frango, os árabes exigem um determinado modo de abatê-lo, cortá-lo e prepará-lo para venda. Ótimo, nossos abatedouros ficaram mais asseados, e o nosso modo de abater diminuiu o sofrimento dos animais.

O problema maior dessa ansiedade pela aceitação exterior é com a nossa inteligência, isto é, com o nosso modo de produzir conhecimento, disseminá-lo e instruir nossos jovens. Se já era ruim no passado, ultimamente, piorou ainda mais.

Como um jovem cientista faz para produzir e ganhar respeito no seu mundo? Como se apresenta um filósofo nacional genuíno, e não tão somente um propagador de ideias vindas de fora?




 
 
Mércio Gomes

Ph.D em Antropologia, presidiu a Funai entre 2003 e 2007. Atualmente leciona na UFRJ. Autor de diversos livros, mantém o blog O Brasil Inevitável.

 
Mércio Gomes
Enviado por Wilson Madrid em 29/12/2020
Código do texto: T7146616
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