Eu me olhei e me gostei nessa foto desde que a vi pela primeira vez, logo após a revelação, não à toa ela estava na agenda. Ao revê-la contemplo o entardecer quente e convidativo de uma quarta-feira inesquecível para quem a viveu. Da noite que caiu e cobriu o céu de estrelas, no início daquele ano em que as revistas de banca anunciavam a Lua como regente dele.
Ainda sinto um tiquinho daquela alegria genuína de acariciar um cachorrinho e ele retribuir a todo o carinho com lambidas, esticando as patas dianteiras, ávido por mais demonstrações de amor. Descanse em paz, pequeno Lipe. Seu adeus precoce ainda me devasta, portanto prefiro me lembrar de você escarafunchando na grama em frente à casa, quando eu já estava dentro do carro e tocava o tema do filme Grease na rádio. Virou a “sua” canção.
Que encanto observar as luzes amareladas dos postes enquanto o carro descia a avenida. E eu ainda gosto, gosto por demais de preservar com amor os instantes mais belos, pois aqueles que não foram eternizados em filmes de 12, 24 ou 36 poses eu almejo que minhas palavras sejam convincentes.
Gosto de me olhar nessa época e ter certeza de que fui feliz com o que a vida me ofereceu. E ela sempre foi generosa. Pelas tantas “segundas chances”. Porque altos e baixos fazem parte do percurso. Feito o saldo, paro por um instante para dar graças por toda a proteção, pelas necessidades supridas, por todas as demonstrações de amor feitas em forma de conselhos, abraços, colo, broncas, bilhetes, presentes e tantas maneiras mais, por todos os livramentos concedidos e a oportunidade de hoje estar aqui. E, cá entre nós, minha afinidade com a lua não se dá por acaso.
Aquele ano hoje tão distante era o início. O início do fim. Do fim do ensino médio. Do fim de muitas amizades, embora seja um tema controverso, mas infelizmente o tempo, as responsabilidades inerentes ao crescer e as próprias diferenças desfazem a promessa. O vislumbre da maioridade era deveras excitante, aquele número mágico que me permitiria fazer todas as minhas vontades sem impedimentos.
 
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No fim das contas, quando a bendita sexta-feira chegou, um ano, dez meses e cinco dias depois desta imagem, olhei-me no espelho e vi a mesma garota de sempre porque com exceção da pressão para passar na droga do vestibular e cumprir todas as obrigações impostas pela sociedade — síndrome de Jenna Rink —, não era tão vantajoso assim. E se eu soubesse que aquele filme que parece tão inofensivo seria tão tóxico para assistir durante a transição de adolescente para jovem adulta, nunca o teria visto porque somente quando cheguei aos 30 dei-me conta dos danos profundos que essa pressão desumana causou não só em mim, mas em muitas outras mulheres. Mostro o rosto e a real. Nem minha escrita almeja iludir ninguém. Nua e crua. Se eu almejasse unanimidade gostaria de ser batata-frita, coxinha ou brigadeiro. E ainda assim tem quem odeie as delícias mencionadas.
Entretanto, nem tudo eram flores nos tempos em que eu aumentava o volume do rádio quando tocava Charlie Brown Jr. e CPM 22 no rádio. Pessoas olhavam para este corpo com nojo, não dispensavam comentários maledicentes, como se o fato de eu ingerir uma bolacha recheada (sim, eu falo bolacha porque sou curitibana) se configurasse num crime indigno de absolvição. Ah, e também me perguntavam sobre a droga do vestibular. Quando não desmereciam meu curso, arregalavam os olhos como se nem de sonhar eu tivesse o direito. Entretanto, depois que um transtorno alimentar corrói até os ossos, os olhares são de repulsa, os julgamentos não cessam.
A vida monta o ringue e a cada golpe aprende-se a sobreviver, a dar a outra face, a reagir e até mesmo ter humildade o suficiente para apoiar-se nas cordas, levantar o braço trêmulo e fraco para admitir a derrota.
Nunca sonhei com Direito e Medicina, até digitalizaria a página do diário referente ao dia seguinte a esta foto para corroborar que meus sonhos eram outros. Sempre foram. Sempre serão... ainda que muitas pessoas o tenham destruído...
Talvez as estrelas para as quais olhei naquele dia já fossem sonhos mortos de alguma garota ávida por explorar o mundo como eu fui, cheia de esperança, de planos, de confiança. Hoje as nuvens densas cobrem o meu teto predileto e esses pontinhos iluminados no infinito refletem tudo que fui obrigada a deixar para trás a fim de estar aqui hoje.
Pedacinhos meus foram levados a cada golpe, cada porta fechada, cada “não” ouvido ou subentendido, cada vez que verifiquei a lista de convocados para a próxima etapa e meu nome não estava lá, cada vez que o meu melhor não foi o bastante, até sobrar tão pouco e o medo fazer morada, travando a personalidade de quem um dia assinava como Destemida e a Menina Superpoderosa preferida era a Docinho. Nervosinha, mas é um docinho.
Vejo meu reflexo nesse espelho quebrado. Ainda existe uma fagulha de esperança. Um sorriso tímido. Por sorte eu soube transformar em recordação o que hoje me serve de inspiração e motivação para despertar nesse mundo insano onde apenas cruzo o muro sem pender para nenhum lado, almejando a liberdade de me reconectar com o cântico que eleva minha alma.
Eu me represento.
Quem tentar falar por mim ou me acusar sem argumentação válida disso e daquilo não passa de oportunista ansiando me tornar uma marionete. Ninguém quer saber qual é o meu “posicionamento”, quais são as bases de sustentação dele, não sou tão ingênua quanto pensam. O real desejo é moldar uma versão de mim que se adeque às expectativas. Sou meiga enquanto permaneço com a boquinha fechada.
E aí, Destemida, o que você tem a dizer? Concorda que a hipocrisia se disfarçou de amor com tanta maestria que até as máscaras caírem, muitos relutarão a aceitar a verdade? Nesse cabo-de-guerra todos morrerão de cansaço ou vencerá quem tiver sanidade e dignidade para desertar dele?
História para os próximos capítulos, Destemida.
 
Marisol Luz (Mary)
Enviado por Marisol Luz (Mary) em 14/01/2021
Código do texto: T7159922
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