O fio da vida

Com 24 anos ele apareceu. Único, escondido, quase invisível num monte de fios negros. De repente reluziu, causando grande espanto. Não acreditava que ia herdar a genética da bisavó italiana que usou um lenço na cabeça a vida toda (até hoje não sei se por praticidade ou conveniência) cobrindo seus muitos fios brancos. Deveria ser incompatível pra uma recém casada já os ter, e ela tinha. Muitos, dizem. Bem, eu herdei. Não vieram todos juntos: foram aumentando ano após ano, num complô silencioso contra minha vaidade. Eles mostravam que eu não era mais menina. À medida que aumentavam, eu pintava mais seguidamente. Em casa, no salão, não permitia nenhum; mas veio a pandemia e o isolamento. Com eles, dicas de atrizes sobre como fazer de conta que nada estava acontecendo e seguir a vida normal. Vida normal? Bem, acho que não. O espelho mostrou quem realmente éramos, ficamos com receio de sair de casa e ficar em casa pareceu hoje muito mais transformador do que qualquer corte de cabelo. No isolamento, encontrei liberdade. Entre quatro paredes, revi minha história. Nos fios brancos, senti a força de uma geração que foi bela sem esconder quem era. Os defeitos não diminuíram as qualidades. Minha bisavó era charmosa, usava brincos de argolas grandes e vestidos compridos. Talvez tivesse ares de cigana, imagino eu, arrastando os vestidos longos desde pequena. Ela era livre pra ser quem era. Talvez não tivesse alternativa, o que, por si só, causaria aceitação. E que alívio não precisar estar de acordo com o esperado! Que maravilha não ter que ser perfeita! Os fios brancos ainda estão aqui, por pouco tempo. O ensinamento deles ficará pra sempre.

Luzz
Enviado por Luzz em 21/04/2021
Código do texto: T7237805
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