Medicina Baseada em Diferenças

“A vida é autorreprodução com variações”¹ e além disso “Os vírus são considerados por muitos como entidades não vivas que sequestram células vivas para se propagarem.”² e “A onipresença da simbiose desafia as noções tradicionais de individualidade biológica.” ⁶ Um vírus, portanto, apenas “é” e se diferencia quando se utiliza de algo que intrinsicamente já “era/é/será”, este, não coincidentemente, também chamado ser. Sua vida depende dessa outra, menos virtual e portadora da capacidade da diferença. Consequentemente, fora dela o vírus pode ser considerado algo morto³, desde que, claro, algo “não-vivo” possa morrer. De mesmo modo um conceito ou uma ideia é, tal qual um vírus, morta até que alguém com ela se contamine e permita-a diferenciar-se, nada mais que uma virose mutando e variando enquanto passa de pessoa a pessoa. A resposta de um corpo a essa infecção, chamada doença, essa contemplação ainda que passiva desse agente exterior é o princípio da vida, a diferença potencial que habita em tudo que é começa a manifestar-se, e tal qual no trema esquizofrênico que anuncia a possibilidade de um delírio psicótico, a contemplação passiva de uma ideia anuncia sua potencial diferenciação.

“Vivência, descrita por Jaspers com o termo pedante esquizoforia, Conrad dá o nome - extraído do jargão do teatro - de trema esquizofrênico, referido à sensação experimentada pelo ator logo antes de entrar pela primeira vez em cena” (Teixeira, Antônio. Entre signo e significante: a esquizofrenia incipiente segundo Conrad. Revista do Departamento de Psicologia. UFF. 2006, v. 18, n. 1, pp. 107-116. APUD Conrad, 1963, p. 47-62)

A multiplicidade inerente à diferença permite a cada instância contempladora a manifestação de infinitas atitudes conscientes, e aí o “ser se conjuga” e de fato vive, nesse instante de resposta, indiferentemente que seja essa condicionada ou espontânea, a vida surge nesse momento, e a ideia que não era passa a ser. A doença de um corpo assim não é um prelúdio da morte, mas a afirmação do seu potencial de vida, um vírus não pode ser em algo que tampouco é. Não há doença sem doente e, por analogia, não há conceito sem contemplação. “É contraindo que somos hábitos, mas é pela contemplação que contraímos.”⁵

“Dona Maria e Seu João são admitidos às 18 horas no Pronto Socorro Respiratório, ambos estão saturando mal (Saturando: termo que se refere à saturação de oxigênio na corrente sanguínea. Normal 95-100; Baixa >95), com dispneia (falta de ar) importante e a tomografia mostra um comprometimento intenso pulmonar, com imagens em “vidro fosco” (Imagem Tomográfica em “vidro Fosco”: Característica da COVID-19 e implica comprometimento pulmonar com gravidade a depender da extensão). Dr. José chega ao plantão as 19 horas, evolui seus pacientes (Evolução: Ato de examinar e atualizar o estado do paciente no sistema) e observa que Dona Maria e Seu João testaram positivo para COVID 19, ele então considera o quadro clínico e decide por intubar (Intubação: Procedimento no qual o paciente tem inserido um tubo na traqueia e normalmente colocado em ventilação mecânica) a dona Maria e seu João, comunica então seu plano terapêutico a seus pacientes e familiares. Dona Maria, uma senhora vigorosa e normalmente forte, chora e se desespera, toda sua família e amigos ficam preocupados e chegam a fazer grupos de oração no hospital, seu neto que há pouco havia se recuperado da infecção se sente culpado, pensa que não deveria ter ido visitar a avó. Dr. Pedro intuba e prona (Pronação: Procedimento onde se coloca o paciente “de barriga para baixo” para melhorar a oxigenação pulmonar). Seu João por sua vez parece não se preocupar, um velhinho franzino e emagrecido, sujo e feio, em situação de rua há muitos anos, coitado, não tem mais contato com a família e apenas pede à técnica de enfermagem que dê um pouco de água a seu cachorro que o espera do lado de fora do hospital. Dr. Pedro intuba e prona.”

Essa estória é fictícia, baseada em experiencias de profissionais de saúde¹⁰ e em notícias⁷⁻⁸, mas poderia muito bem ser real. Ignorando a ironia de explanar a não-realidade de uma narrativa enquanto se medita a própria capacidade para perceber tal coisa, o conto em questão possibilita uma análise material das ideias de Deleuze, pela própria contemplação e subsequente atitude que provoca.

"282. Lamentação. — São talvez as vantagens de nosso tempo que trazem consigo um retrocesso e uma ocasional subestimação da vida contemplativa. Mas é preciso reconhecer que nosso tempo é pobre em grandes moralistas; que Pascal, Epiteto, Séneca, Plutarco são bem pouco lidos; que o trabalho e a diligência — que antes estavam no cortejo da deusa Saúde — às vezes parecem grassar como uma doença." (Humano, Demasiado Humano. Um livro para espíritos livres. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2000, item 282)

Percebe-se nessa estória a relatividade do processo de adoecer. Maria e João fazem parte dos que desenvolvem a forma grave da doença, inúmeros fatores fizeram essa potencialidade real, talvez o peso de dona Maria, talvez a drogadição de seu João, mas não importa mais, agora que o corpo de ambos já contempla a infecção o “objeto doença” existe e, nesse ponto, passam também a existir os doentes Maria e João e nesse momento a possibilidade da diferença se manifesta. Maria e sua família ao contemplar a doença tem como diferença o sofrer. João o ignorar. Pedro diagnostica e escolhe seguir o protocolo de tratamento (intubação orotraqueal e pronação do paciente).

"Da ótica do doente ver conceitos e valores mais sãos, e, inversamente, da plenitude e certeza da vida rica descer os olhos para o secreto lavor do instinto de décadence – este foi o meu mais longo exercício, minha verdadeira experiência, se em algo avim a ser mestre, foi nisso. Agora tenho-o na mão, tenho mão bastante para deslocar perspectivas." (Ecce Homo. Como alguém se torna o que é; Trad., notas e posfácio Paulo César de Souza. – São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 2ª ed.; 3ª reimpressão. Por que sou tão sábio 1)

Uma vez mais voltamos a um estado potencial, ou virtual como diria Deleuze, parecido com o que precedeu o diagnóstico. João e Maria podem responder bem ou mal ao tratamento. Tal qual uma ideia não-manifesta, a cura nesse momento é tão possível quanto a morte, e também todas manifestações entre esses extremos. É apenas em um momento posterior, que depende de atores, fatores e vetores múltiplos que o prognóstico vai vir a ser. No momento, feito o Gato de Schroedinger, tudo é e não é ao mesmo tempo.

"Dos presentes que se sucedem e exprimem um destino, dir-se-ia que eles vivem sempre a mesma coisa, a mesma história, apenas com uma diferença de nível: aqui mais ou menos descontraído, ali mais ou menos contraído. Eis por que o destino se concilia tão mal com o determinismo, mas tão bem com a liberdade: a liberdade é de escolher o nível. [...] chamamos de caráter numênico as relações de coexistência virtual entre níveis de um passado puro, cada presente só fazendo atualizar ou representar um desses níveis. E o que dizemos de uma vida, podemos dizer de várias. Sendo, cada uma, um presente que passa, uma vida pode retomar uma outra em outro nível: como se o filósofo e o porco, o criminoso e o santo vivessem o mesmo passado, em níveis diferentes de um gigantesco cone. O que se chama metempsicose. Cada um escolhe sua altura ou seu tom, talvez suas palavras, mas o ar é bem o mesmo e há um mesmo blá-blá-blá sob todas as palavras, sobre todos os tons possíveis e em todas as alturas." (DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição (trad. Luiz Orlandi & Roberto Machado). São Paulo: Paz & Terra, 2018. Pág. 88)

“Às 05 horas do dia seguinte Dona Maria parece evoluir bem, sua saturação melhorou razoavelmente e Dr. Pedro se sente confiante em sua recuperação. Já Seu João não responde bem, sua saturação tem piorado e Dr. Pedro pensa que ele pode entrar em parada cardíaca a qualquer momento. Às 06:30 Dr. Pedro liga para avisar os familiares de Dona Maria do seu estado, esses ficam felizes em saber que ela tem respondido ao tratamento. Às 07 horas ele passa o plantão e vai para casa, quase atropelando um cachorro que dormia na saída do hospital.

Ao assumir o plantão dois dias depois Dr. Pedro é chamado à UTI COVID pois havia um paciente em parada. Drogas, massagem cardíaca, desfibrilador e nada. João vem a óbito as 19:30 daquele dia e ao sentar-se para atestar o óbito Dr. Pedro pergunta por Dona Maria e descobre que ela também veio a óbito mais cedo, por volta da 18:30, e que a família já o esperava para receber o comunicado. Seus filhos choram, seu neto sentindo-se culpado se desespera, mas o médico nada mais pode oferecer que consolo. Dez minutos depois Dr. Pedro volta à ala COVID, mais 3 pacientes com critérios para intubação. Dr. Pedro intuba e prona.”

“Grande, no homem, é ser ele uma ponte e não um objetivo: o que pode ser amado, no homem, é ser ele uma passagem e um declínio”. Assim Falou Zaratustra. 15ª ed. Trad. de Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

Nietzsche, depois de anunciar a morte de Deus, proclama a apoteose da Saúde e é interessante ver como conceitos como o eterno retorno, a tragédia e a potencialidade são reinterpretados por Deleuze em suas obras. A capacidade da diferença, quando experimentada pela ótica do eterno retorno, é de propiciar a vida. É na diferença, ou na repetição dessa diferença que qualquer ação e consequentemente qualquer resultado é possível. A morte é assim a igualdade, a incapacidade de ser outra coisa que não isso, morte. O grande equalizador, o que torna todos, ou melhor tudo, o mesmo.

"E o que seria o eterno retorno, se esquecêssemos que ele é um movimento vertiginoso, que ele é dotado de uma força capaz de selecionar, capaz de expulsar assim como de criar, de destruir assim como de produzir, e não de fazer retornar o Mesmo em geral? A grande ideia de Nietzsche é fundar a repetição no eterno retorno, ao mesmo tempo, sobre a morte de Deus e sobre a dissolução do Eu." DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição (trad. Luiz Orlandi & Roberto Machado). São Paulo: Paz & Terra, 2018. Pág. 20

“O peso mais pesado”, se bem diferenciado, pode ser na realidade bem leve. A família de Dona Maria ao contemplar sua morte pode trabalhar o luto, pode ressignificar a perda e até mesmo seu neto inconsequente pode escolher agora a diferença e ‘de novo e de novo’ não expor seus familiares ao risco de contaminação. Dr. Pedro pode, e deve, sempre se atualizar nos protocolos e tratamentos para a COVID, contemplando cada doente e cada momento. Até o cachorro de Seu João pode fazer diferente um dia e não mais esperar pelo dono no hospital. Dona Maria e Seu João entretanto, agora já iguais, não podem mais.

"341 - O peso mais pesado

E se um dia, ou uma noite, um demônio te seguisse em tua suprema solidão e te dissesse: "Esta vida, tal como a vives atualmente, tal como a viveste, vai ser necessário que a revivas mais uma vez e inumeráveis vezes; e não haverá nela nada de novo, pelo contrário! A menor dor e o menor prazer, o menor pensamento e o menor suspiro, o que há de infinitamente grande e de infinitamente pequeno em tua vida retornará e tudo retornará na mesma ordem, essa aranha também e esse luar entre as árvores e esse instante e eu mesmo! A eterna ampulheta da vida será invertida sem cessar e tu com ela, poeira das poeiras!" Não te jogarias no chão, rangendo os dentes e amaldiçoando esse demônio que assim falasse? Ou talvez já viveste um instante bastante prodigioso para lhe responder: "Tu és um deus e nunca ouvi coisa tão divinal" Se este pensamento te dominasse, tal como és, te transformaria talvez, mas talvez te aniquilaria; a pergunta "queres isso ainda uma vez e um número incalculável de vezes?", esta pergunta pesaria sobre todas as tuas ações com o peso mais pesado! E então, como te seria necessário amar a vida e amar a ti mesmo para não desejar mais outra coisa que essa suprema e eterna confirmação, esse eterno e supremo selo!" (A Gaia Ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2002. Item 341)

O que dá então identidade à cada coisa, identidade essa única para cada ser que a contemple, é capacidade da diferença de se repetir sucessivamente. A palavra Hábito vem do latim Habitus (vestimenta, condição) e nada mais é que isso, uma roupa que escolhemos usar. A princípio de contemplativa, e apenas potencialmente consciente, claro, mas que de um jeito ou de outro se manifesta no mais simples ao mais importante momento do que se chama viver.

Referências

1. https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/073911011010524992

2. Harris HMB, Hill C. A Place for Viruses on the Tree of Life. Front Microbiol. 2021 Jan 14;11:604048. doi: 10.3389/fmicb.2020.604048. PMID: 33519747; PMCID: PMC7840587.

3. Moreira D, López-García P. Ten reasons to exclude viruses from the tree of life. Nat Rev Microbiol. 2009 Apr;7(4):306-11. doi: 10.1038/nrmicro2108. Epub 2009 Mar 9. PMID: 19270719.

4. Teixeira, Antônio. Entre signo e significante: a esquizofrenia incipiente segundo Conrad. Revista do Departamento de Psicologia. UFF. 2006, v. 18, n. 1, pp. 107-116. APUD Conrad, 1963, p. 47-62

5. DELEUZE, G. Diferença e repetição Rio de Janeiro: Graal, 1988.

6. John Dupré, Stephan Guttinger, Viruses as living processes, Studies in History and Philosophy of Science Part C: Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences, Volume 59, 2016, Pages 109-116, ISSN 1369-8486.

7. https://g1.globo.com/pe/caruaru-regiao/noticia/2021/04/05/grupo-faz-oracao-e-canta-em-frente-ao-hospital-manoel-afonso-em-caruaru.ghtml

8. https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/2021/01/04/cachorro-dono-covid

9. Humano, Demasiado Humano. Um livro para espíritos livres. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2000

10. Experiencias próprias durante o enfrentamento à COVID-19 em Foz do Iguaçu.

11. Ecce Homo. Como alguém se torna o que é; Trad., notas e posfácio Paulo César de Souza. – São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 2ª ed.; 3ª reimpressão.

12. Assim Falou Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém. 15ª ed. Trad. de Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

Rob J Cole
Enviado por Rob J Cole em 01/06/2021
Reeditado em 01/06/2021
Código do texto: T7269476
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