— Um heterônimo? — Indagou Izabel; e mais disse:
— Quais as razões que podem levar um escritor a conceber, gerar e dar à luz um heterônimo para que este se torne senhor das suas letras, as do escritor? 
— Tantas razões há! — Respondeu o doutor — A julgá-las todas não espero poder, pois, ao menos por mim, algumas não são bem compreendidas, assim, a enumerá-las me atenho a não mais que a três delas, logo, sem maior dificuldade, se quiseres ouvi-las, ei-las: 
Sem perder mais tempo, ou para ganhá-lo, antes que eu justifique a existência dos heterônimos, tu e eu já considerávamos que toda e qualquer pessoa, em algum momento de sua vida, poderá se ver portadora de uma doença, entre tantas que há; neste momento, essa afecção evoluirá bem, esvaindo-se para sempre, ou, de forma insidiosa e adversa poderá, após algumas intercorrências, se agravar, e resultar em um prognóstico reservado, qual seja tornar-se-á sombrio, pois, sem demora ou a passos lentos, evoluirá até que a morte lhe dê termo — não à afecção, mas ao seu portador... Entretanto, entre as enfermidades, encontra-se uma singular, pois jamais se inclina a fazer quaisquer acepções de pessoas, uma vez que, inexoravelmente, poderá acometer, sem quaisquer distinções, quaisquer indivíduos, ainda que estejam estes hígidos e inclinados à vida plena. Por ser tão distinta, essa enfermidade, quando em firme idade se instala, ou seja, quando ela acomete uma pessoa que já tem consolidada a sua própria identidade, poderá encerrar em si uma doce elação, ao suscitar, logo de início, em sua vítima, um forte desejo de se despojar de si, para em si acomodar outrem... 
E mais falou o atraente médico:
— Ainda antes de alcançarmos aquelas razões — as que levam uma pessoa a conceber um heterônimo — desviemos de seu caminho natural algumas palavras, para usá-las à definição de síndrome; conforme bem sabes, síndrome é o conjunto de sinais e sintomas que caracterizam uma enfermidade; a ser assim, se há alguma pessoa que queira mudar a sua própria identidade, ao criar para si um heterônimo, poderemos afirmar sem nenhum esforço imposto à nossa mente, que de demente, ainda que seja um diminuto vestígio, tem essa criatura; contudo, se ela estiver cônscia de si e disposta a cultivar a ética, não criará para si um heterônimo para atender a nenhum espúrio desígnio, tão somente o fará para que ele assuma a sua obra — a obra do autor que o criou — pois se espera de um heterônimo que ele não passe de um ente da razão destituído de quaisquer ambições próprias; a despeito do novo autor, ou antes, da nova criatura apenas ocupar o lugar do autor que a criou, para sustentar o seu próprio brio, brilho próprio haverá de ter, ao adquirir um perfil bem definido, que bem poderá se assemelhar ao do seu senhor, ou do dele muito se distanciar, ou ainda — o que é mais usual — poderá herdar do seu criador todas as suas virtudes, e dele desprezar todos os seus vícios... Quando essa última conjunção se dá, o autor, ao ver tomar posse da sua obra a criatura que ele gostaria de ser, amiúde, por algum resquício de inveja, um tanto ressentido por tê-la criado poderá ele ficar... 
Agora sim, cheguemos às razões que levam alguém que lida com as letras a criar um heterônimo para si; são elas: de início, o desejo de se tornar imune às críticas e alheio aos elogios advindos dos seus leitores; em seguida, a vontade de se livrar do assédio daqueles que dele querem um autógrafo; e por fim, pôr fim a outros incômodos menores, que em conjunto, podem lhe causar maiores danos... 
Agora, livres de todas as amarras que o pensamento pode cindir, imaginemos a singularíssima conveniência que há quando alguém cria para si um heterônimo. Por dispor de todos os recursos indispensáveis para levar a termo esse propósito, se esse alguém — ainda que esteja a fugir de elogios — também pudesse dotar a sua criatura com o poder da fala, o faria sem hesitar, pois logo em seguida, com muito gáudio, dela poderia ouvir estas palavras, em recompensa pelo seu ato dele: 
— Fui criado à tua imagem e semelhança! Entretanto, ainda que muito me assemelhe a ti, algum tanto diferente de ti hei de ser, mas, mais me aproximaria de ti se algum dia pudesse te mostrar quão grande fora a minha gratidão por te recebido das tuas mãos a tua pena; e se esse momento chegar, sem por mais nada esperar, a ti isto direi: 
— Por assumir a tua obra, agradeço-te, e para recompensar-te, assumo também de bom grado, em teu favor, dois grandes ônus que te sufocam o tempo todo, quais sejam o obrigatório convívio social que tens por estares entre os teus semelhantes, e a anuência compulsória que contraíste ao pagar os vários tributos impostos à sociedade; e para que o senhor e meu criador entenda bem a dimensão do meu desprendimento ao assumir esses fardos, sobre eles, mais isto devo dizer: 
— Esses débitos infindáveis vêm sempre unidos entre si, pois não se separam jamais, uma vez que, de vez, o viver de um, depende da vida do outro, porquanto um deles subjuga a nossa alma, já o outro aniquila o nosso corpo, logo, em conluio sempre estão... Vê, meu querido senhor! Quão mais feliz seria a criatura humana, quando não felicíssima, se pudesse dizer de si: — desci ao rés da minha resistência, subjugada por dois insustentáveis ônus, mas agora, por graça recebida do meu heterônimo, sinto que deles consegui me livrar! 
Enquanto dizia essas palavras, a atenção e o encanto de Izabel, ao ouvi-las, deixaram o doutor Ahmed mais disposto a falar, tanto que mais isto falou:
— Depois de ouvir essas palavras do meu heterônimo, caio na realidade para tocar nesta cruenta verdade:
A certeza que tenho, para outrem poderá carrear dúvida, ainda assim, ouso, por todos os semelhantes meus, admitir isto: ainda que eu não alcançasse aquela graça — a de ser substituído por um heterônimo — creio que não há ônus maiores que aqueles dois, a nos deixar mais tensos, com os seus pesos, pois se houvesse, estariam além das lindas da nossa imaginação... Ainda assim, estou indeciso, não quanto à possibilidade de me livrar daqueles tributos, mas sim, se posso desprezar o convívio social, pois me falta evidência para contestar a sua conveniência; a ser assim, tenho certeza de que pelo menos uma dúvida não deixarei de ter, e aqui, mostrar-te-ei em forma de interrogação, essa incerteza, pois tu, talvez, a tenhas também: 
— Há alma solitária, que assim quer ficar, na esperança de evoluir por si, para, em seguida, só para si colher sem dividir com os seus pares os frutos da sua própria solidão? Se por resposta a essa indagação, podes, sem dúvida, dizer que sim, quanto a mim, com toda certeza, duvido que tal existência haja, logo insisto, ao fazer a ti, mais estas duas perguntas: 
— Em algum momento, quando a tua alma se encontrava solitária, triste tornaste? Ou tornaste-te triste só quando ao lado de outros semelhantes teus te viste? 
Neste momento, por continuar a contar com o contínuo interesse de Izabel às suas palavras dele, continuou a falar o doutor Ahmed:
— Por tanto tempo que estás a pensar, se de ti nenhuma resposta ouço, ouso te dizer isto: 
— Ainda que carregue comigo a insegurança da tua resposta que hás de me dar, se não estivesse sob a égide de um heterônimo, seria quase que insuportável tolerar o convívio social; a ser assim, com segurança isto posso afirmar: 
— Pobre é o meu heterônimo que já fora livre... Ao receber a minha pena, pena dele tenho, pois atou-se a mim... Enquanto isso, já não mais desgasta o meu físico o fisco, e não coroe a minha alma as armas dos meus semelhantes... 




















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Eugene Garrett
Enviado por Eugene Garrett em 03/09/2021
Reeditado em 03/09/2021
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