Justiça – 17/05/2021

O que é este texto:

Um resumo da minha interpretação do debate em torno da pergunta "o que é a justiça?", que é uma das principais dentre as várias abordadas no livro A República (Da justiça), escrito por Platão. As ideias não são propriamente minhas, é apenas minha interpretação. Ela foi extraída duma tradução (de qualidade profundamente questionável) para o português brasileiro pela editora Lafonte, que comprei por R$30 na amazon.

De qualquer forma é um livro complexo e eu sou carente de inteligência e repertório, o li e então escrevi o presente texto. Os recursos de pesquisa ao alcance conhecidos por mim eram: YouTube, Wikipedia, blogs (e alguns PDFs que só posso comparar a mensagens engarrafadas perdidas no oceano da internet); além de, é claro, um universo de analogias e entendimento de mundo que eu já possuía. Todas estas coisas foram como uma gosma que aglutinou os pedaços de raciocínio que pude captar do texto, formando uma estrutura de compreenção.

Enfim, estou praticando a técnica de Feynman: explicando as ideias através da escrita para entende-las, para organizar meus pensamentos de agora que provavelmente mudarão semana que vem. Meu objetivo é apenas esta organização, não quero apontar nenhuma verdade neste texto e não sei se meu entendimento está correto. Portanto não tenho certeza de nada e a probabilidade de concluir asneiras quando abordo temas mais sutis é alta. Preciso fazer sentenças afirmativas para prosseguir pelos pensamentos (e discernir quais são os corretos através da lógica), mas elas estão sempre sombreadas de dúvida.

O QUE É SER JUSTO? SER JUSTO É DAR A CADA UM AQUILO QUE LHE PERTENCE.

Antes de ter certeza dessa afirmação vamos definir o que, concretamente, ela quer dizer. Assumo a premissa de que a justiça é uma coisa que sempre deve ser boa em si mesma ou pelo menos uma coisa que sempre vai produzir bons resultados, logo, para toda vez que se dá a alguém aquilo que lhe pertence se faz uma boa atitude ou pelo menos uma atitude que implica em bons resultados.

Mas se se pega emprestado dum amigo com forte tendência suicida uma arma, devolvê-la nestas circunstâncias seria uma péssima atitude com péssimas consequências, logo, dizer que ser justo consiste em restituir a cada um o que se pegou emprestado é falso e a afirmação do título só pode ser verdadeira se quer dizer outra coisa.

Talvez signifique fazer mal aos inimigos e bem aos amigos, como na guerra em que os soldados atacam os inimigos e protegem aos amigos. Mas qual utilidade desta justiça na paz? Ora, é útil nos contratos e sociedades com relação ao dinheiro, isto é, para que os amigos fiquem tranquilos quando fecham negócio entre si é necessário que os dois sejam justos.

Mas antes de afirmar esta como a definição correta devemos considerar que assim como um infectado assintomático tem excelente imunidade à covid ao mesmo tempo que é o melhor para transmiti-la aos outros sem que ninguém perceba, e hackers extremamente hábeis em invadir são contratados pelas empresas de tecnologia para defender seus sistemas, alguém que é ótimo para guardar dinheiro também é ótimo ladrão. Logo, se o justo é confiável para guardar o dinheiro também é hábil na ladroagem, e a própria prática da justiça inclui a prática do roubo já que se guardo o dinheiro do meu amigo o do meu inimigo eu roubo. É óbvio que, sob qualquer aspecto, é no mínimo estranho que ser justo também seja ser ladrão, mas, considerando que esta última divagação é um tanto quanto esquisita e viajada apontarei um outro problema com esta mesma definição.

“Ser justo é fazer bem aos amigos e mal aos inimigos”. Naturalmente fazemos amizade com quem achamos que é bom e inimizade com quem achamos que é mau. Mas muitas vezes nos enganamos nesta avaliação e achamos que pessoas honestas são más e vice-versa. Quem está neste tipo de engano pensa que é amigo quem lhe faz mal e inimigo quem lhe faz bem, logo, para esta pessoa seria justo fazer mal a quem lhe faz bem e bem a quem lhe faz mal, o que sem dúvidas seria errado. O problema deste raciocínio é que ele se guia por uma concepção de “amigo” e “inimigo” que leva em conta a emoção e não a objetividade, assim ele diz que é justo fazer o bem ou o mal para as pessoas de acordo com o sentimento de simpatia (pelos amigos) ou antipatia (pelos inimigos) que temos por elas quando deveria ser de acordo com a verdade objetiva: se elas são objetivamente boas lhe fazemos o bem e do contrário fazemos o mal. Logo, uma melhor definição de justiça seria fazer o bem às pessoas verdadeiramente boas e o mal as verdadeiramente más. Porém...

Assumindo que a justiça é virtude humana e que virtuoso é algo que tem excelência em cumprir sua finalidade específica (por exemplo uma churrasqueira: quanto melhor assa a carne mais virtuosa ela é) a prática da justiça não pode fazer mal a outro humano, quer seja ele bom ou mau, pois, por exemplo, ao maltratar um cachorro o tornamos pior em relação às suas qualidades de cachorro, e se justiça é virtude humana também é qualidade humana, portanto quando praticamos a justiça com os outros é impossível que o resultado seja os deixar piores em relação as suas qualidades humanas do mesmo modo que é impossível um escritor (virtuoso) da língua portuguesa tornar, com sua arte, alguém ignorante em língua portuguesa, ou um violinista (virtuoso) tornar alguém ignorante em música ao tocar violino. O que ocorre é o contrário, o escritor torna as pessoas mais sensíveis à língua do mesmo modo que o violinista faz com a música, e assim a pessoa justa faz com a justiça. Portanto, dizer que a justiça é fazer o mal a quem quer que seja não se sustenta.

Vamos olhar isto com calma. Primeiro a definição de virtude. Virtuoso é algo que é bom em cumprir sua finalidade específica. O que é a finalidade específica? A finalidade específica de alguma coisa é aquilo que só ela pode fazer ou faz melhor do que qualquer outra. Por exemplo, só os olhos podem enxergar (e não os ouvidos ou o nariz), logo esta é a finalidade específica deles. Contudo, as possíveis finalidades que empregamos a um livro podem variar. Por exemplo, um livro didático de matemática pode ser usado como combustível para uma churrasqueira, mas claramente esta não é sua finalidade específica. Portanto não podemos julgá-lo como um livro ruim se não cumpre bem a função de combustível, apenas se não cumpre bem a sua finalidade específica: ensinar matemática. Dizemos que se este livro cumpre bem esta finalidade é um livro virtuoso e se cumpre mal, vicioso. Ensinar matemática é sua virtude e o contrário seu vício. Vamos aceitar a premissa de que a justiça é uma virtude humana. Se fazemos mal a um cachorro, por exemplo privando-o de comida ou lhe machucando a pata, vamos piorá-lo nas suas virtudes de cachorro (como a de proteger o rebanho). Se fazemos mal a um humano o mesmo acontece, e como já assumimos que a justiça é uma virtude humana maltratar o humano não irá torná-lo mais justo, mas sim o contrário. E se praticar a justiça consiste em fazer mal a quem quer que seja significa, de acordo com o arrazoado acima, que a prática da justiça consiste também em tornar alguém mais injusto. Faz sentido um músico com a prática da música, tornar alguém mais ignorante em música? Um jogador de futebol habilidoso, com o futebolismo, tornar alguém pior em futebol?

De qualquer modo, ninguém diz que seu patrão é justo quando este promove alguém a um cargo superior na empresa unicamente por uma questão de afinidade ou amizade de longa data, em detrimento daquele que é mais capaz e eficiente.

Talvez dar a cada um o que lhe pertence seja dar aos fortes o lugar da liderança, sendo justo o povo que obedece às leis. Mas os governantes não são infalíveis e uma coisa não pode ser considerada justa apenas por ser lei.

JUSTIÇA É CADA UM OCUPAR SUA FUNÇÃO ADEQUADA

Nas culturas tupis, as mulheres cuidam do plantio e do preparo dos alimentos, o que se destaca dentre os chefes de cada família duma aldeia por seus atos de guerra, o morubixaba, lidera os outros homens dela; e os karaíbas conhecem os espíritos da floresta e dos astros, não pertencem a nenhuma tribo e todas os temem. No sistema de castas hindu os brâmanes são os sacerdotes letrados que nasceram da cabeça de Brahma, os xátrias são os guerreiros que nasceram dos braços, os vaixás e os sudras são os comerciantes e os servos que nasceram das pernas e dos pés, respectivamente. Na idade média os servos trabalhavam no campo, no artesanato e na produção em geral, a nobreza era a classe guerreira e por serem líderes militares é que usufruíam dos impostos dos servos; logo se preocupavam muito mais com a guerra do que com estudos: estudar era coisa do clero, a quem eles reconheciam como autoridade. Todas essas sociedades, por mais diferentes e imperfeitas que sejam na prática, parecem buscar o mesmo ideal de organização tripartida: O sábio discerne o que é bom pra cada um, o guerreiro põe em prática o que o sábio manda e os agricultores, artesãos e comerciantes produzem pra sustentar o todo. Se esse esquema funciona ou não eu não sei, mas vou continuar escrevendo sobre minha interpretação da tripartição da cidade/alma proposta por Platão para chegarmos logo na definição de justiça dada na República.

Cada classe necessita de uma virtude para desempenhar sua função: um governante sem sabedoria não saberia discernir o que é bom pra cada um, exatamente como alguém que devolve uma arma prum amigo com forte tendência suicida. Um guerreiro sem coragem fraqueja diante do sofrimento ou do prazer e não se mantém fiel ao governante, exatamente como alguém que não se mantém fiel aos princípios éticos e sai fazendo mal a qualquer um a quem tenha antipatia e bem qualquer a qualquer um que lhe faça um agrado, sem ponderar suas atitudes ou refletir sobre a dos outros. Um agricultor sem temperança acabaria se deixando levar pelos desejos e assim trabalharia somente em função de si mesmo ao invés de colaborar com o funcionamento da sociedade, exatamente como um niilista que considera que a justiça não existe e, portanto, somos nós mesmos que a inventamos de acordo com a nossa vontade, sendo a vontade mais forte a que manda e tudo que ela dita é lei (esta lei é infalível porque a verdade absoluta não existe, cada pessoa é quem faz a sua própria verdade e ela muda conforme a circunstância).

Voltando aos tupis, mas desta vez para sua língua, existem três tipos de substantivos: os possuíveis, os não possuíveis e os obrigatoriamente possuíveis. A grosso modo, os não possuíveis são elementos da natureza, nesta língua dizer "minha árvore" ou "a onça do pajé" é inconcebível. Os opcionalmente possuíveis são utensílios, artesanatos, produtos culturais, numa palavra: são as coisas artificiais. Os obrigatoriamente possuíveis são as partes dum corpo, partes duma paisagem ou do sistema de relações sociais (determinadas principalmente por patrilinearidade): não se diz somente "akanga", pois a cabeça, pra ser cabeça, tem que ser cabeça de alguém. Mas também nunca se diz somente "mena", pois o marido, pra ser marido, tem que ser necessariamente marido de alguém. Assim, na minha opinião, o tupi nos mostra como os membros da "anama" (palavra que pode ser traduzida tanto como família ou parente(s), quanto como tribo ou nação) são tão importantes um para o outro quanto os membros do corpo humano o são, como se uma tribo fosse uma só pessoa onde cada pedaço é um órgão do corpo hierarquicamente organizado e como se cada uma das pessoas fosse uma miniatura da tribo.

Desta forma as três virtudes de toda a sociedade (sabedoria, coragem e temperança) também aparecem na pessoa individual. Sua faculdade racional funciona como governante (filósofo, rei, letrado, cientista, ou seja lá o nome que você preferir) e necessita da virtude da sabedoria para discernir quais são as melhores escolhas pra vida, seu emocional funciona como guerreiro e necessita da virtude da coragem para por em prática estas boas escolhas. Por fim, seus apetites funcionam como agricultores que necessitam da temperança pra fornecer na medida e qualidade ideais a "comida" que sustenta o todo.

É famoso como Ezequiel relata a aparição de anjos, e um dos tipos dentre os quais ele descreve tem rosto de homem, de boi, de leão e de águia, e embora me pareça muito estranho que um anjo precise duma virtude como a temperança, estes quatro rostos lembram-me bastante a classificação Platônica das virtudes. Ora, os bois são o símbolo da força física, do trabalho no campo e da provisão enquanto os leões do ímpeto, da coragem, da nobreza e da ira. E os homens se diferenciam de todos os outros animais por sua característica especial, a razão. Talvez a águia simbolize a própria alma, nossa essência, centelha divina que há em cada ser humano... ou uma quarta virtude nescessária para cidade/alma...

Porque além destas três virtudes (sabedoria, coragem e temperança) existe a justiça. Dar a cada um aquilo que lhe pertence quer dizer dar a cada faculdade humana (raciocinar, emocionar-se e sentir prazer) o seu lugar de direito na hierarquia da alma. Ou seja, justiça é cada um ocupando sua função adequada, quem nasce com aptidão para ser comerciante que seja comerciante, o mesmo para agricultores, guerreiros e reis.

Mas na minha opinião, Platão fala muito mais sobre sabedoria, coragem e temperança do que sobre governantes, guerreiros e agricultores. No livro o Estado ideal aparece apenas como uma forma de analogia para se discutir sobre a alma, uma espécie de ilustração política para se falar sobre ética. Como seria encará-lo como sendo mais sobre política do que ética? Será que Platão era um tipo de teórico desenvolvendo um projeto de sociedade utópica?