Ser visto

Recentemente eu assisti a um filme que me fez pensar por dias. Um dos melhores que já tive a sorte de assistir nesses vinte e três anos de existência. Uma obra que tem muito a nos agregar enquanto seres humanos, pessoas, indivíduos com o potencial de mudar o mundo, se não o mundo como um todo, mas com certeza o mundo de alguém. Ele se chama “Somos Todos Iguais”, apenas o título já traz uma importante mensagem, não é verdade?

Eu poderia elencar uma série de reflexões a partir dessa produção. Ao longo da história passamos por tantos temas que não temos nenhum minuto de tédio, a todo instante somos levados a refletir sobre nossos próprios posicionamentos e jeitos de estar na vida. Mas a que mais me tocou foi em relação ao homem que estava em situação de rua. Não vou dar muitos detalhes sobre o filme, gostaria muito que você o assistisse e depois compartilhasse comigo as suas impressões, mas deve ser suficiente você saber que no começo da história acompanhamos um homem e uma mulher, casados, passando por dificuldades em seu casamento. Eles, então, acabam se envolvendo em um serviço de caridade que oferecia refeições às pessoas em situação de rua. Acho que não imaginavam que aquela atitude salvaria seu próprio relacionamento. Se servir de incentivo para que você assista ao filme, ele é baseado em algo que aconteceu de verdade!

O homem ao que me referi no parágrafo anterior era alguém bastante agressivo, intransigente, que com o seu modo intimidador de se fazer notar acabava afastando as pessoas. Era sua maneira de se proteger dos outros, não permitir que se aproximassem, era assim que se sentia seguro depois de tantos traumas vividos no passado. Mas ele se aproxima do casal em questão. Revela-se. E nos emociona com tudo o que traz sobre si mesmo. Porém, para mim, o momento mais emocionante, e que servirá de fundo para a nossa discussão hoje, foi quando ele perguntou ao homem que oferecia os pratos de comida o que ele achava que aquilo significava. O homem, então, disse que era uma forma de fazer bem, de ajudar, enfim, uma maneira de prestar auxílio a quem precisava. Mas aquele outro homem, o que estava em situação de rua, disse que não era apenas isso, mas que quando ele entregava um prato de comida a qualquer um daqueles que viviam em condições tão vulneráveis, estava na verdade dizendo: “Você não é invisível. Eu vejo você”. Confesso que nessa hora eu me arrepiei.

Vivemos sob os excessos de um capitalismo violento que, enquanto a poucos dá muito, a muitos dá tão pouco e ainda os obriga a repartir o nada que têm. E dentro desse cenário estão aqueles e aquelas que são invisibilizados por toda uma sociedade. Que ao estenderem a mão cansada veem as pessoas se afastarem delas como se tivessem medo de algo contagioso. Que ao olharem para alguém com aqueles olhos cansados, cheios de desesperança, não conseguem criar uma conexão porque o outro logo desvia como se não estivesse vendo, mas na verdade anunciando: “eu não quero ver”.

E por que não queremos ver? Por que não somos capazes de suportar a crueldade da vida? Por que não somos fortes o bastante para entendermos que enquanto estamos amaldiçoando a vida por não termos uma roupa nova para aquela festa, mesmo tendo nossos armários cheios, há pessoas maltrapilhas implorando por um prato de comida? Por que não queremos ver o lado frio da vida? O lado do desprezo, da descrença, da desmotivação, da falta de perspectiva, da falta de humanidade...

Como podemos viver numa sociedade que aceita que os supermercados desperdicem toneladas de alimentos todos os anos enquanto seres humanos frágeis abrem sacolas de lixo na esperança de encontrarem alguma coisa? Como podemos apontar os nossos dedos para julgá-los, chamá-los de vagabundos e dizer que eles querem uma vida fácil? Conhecemos suas razões? Sabemos quais escolhas eles tiveram que fazer para chegar àquela situação? Sabemos quais circunstâncias tiveram que enfrentar e que os levaram àquele destino? Que possamos agradecer, ao que quer que seja, por não termos tido que enfrentar as escolhas que eles enfrentaram nem viver as circunstâncias que eles viveram.

Que possamos ver essas pessoas. Não no simples sentido de enxergá-las com os olhos, mas no sentido de cobrarmos por soluções e, quando essas soluções não puderem ser tão imediatistas, no sentido de tratarmos temporariamente o problema. “Ah! Mas existem abrigos”. Por acaso você perguntou para aqueles que não procuram ou não aceitam um abrigo o porquê de tal decisão? Para você pode parecer muito fácil dizer isso. Para você, no conforto da sua casa com ar condicionado e cama quentinha pode ser muito fácil fazer julgamentos tão mesquinhos e simplórios. Mas e para aquele que vive uma realidade infernal? Que está aprisionado num abandono impossível de descrever? O que será que eles pensam? Como será que eles se sentem? Qual será o seu anseio? Antes de, de dentro do seu possante, apontar seus dedos tortuosos, tente pisar um pouquinho no mesmo solo que o outro e então perceba as pedras que ele precisa suportar. Será que você suportaria?

(Texto de @Amilton.Jnior)