Eu meti Lúcio Costa, colonialização, identidade e linguagem num mesmo texto

Sobre Lúcio Costa, o típico brasileiro em ambiguidade, reconheço dele em mim com a mesma autenticidade o conflito entre percepções turvas e afetuosas em relação ao passado do país embalado antes de nós nascermos e o reconforto seco do bem da modernidade, que suprime os fantasmas, desmascara os vilões, erradica a fome, acaba com a aristocracia, mas que ao mesmo tempo se desliga do carinho das pequenas brasilidades, torna-se cáustico a vida tranquila, despe-se de qualquer identidade que não uma de práxis da massa entremeada de pobreza, sujeira e alienação. Esta nossa grande tristeza de avançarmos industrialmente ao passo em que tornamo-nos mais ordinários, indistinguíveis, isentos de especificidades, mesmo que as ruins, tem o sabor amargo de comprar algo caro que na verdade é tão vagabundo quanto qualquer produto mais barato. Pro Lúcio a questão era a falta de contato com o Colonialismo, o passado campestre que a industrialização da cidade vinha consumir sem nenhum confronto ético a respeito. Como se fosse automático o Brasil sumir, por ter sido para os outros sempre tão irrelevante que a nós mesmos agora poderia parecer também e estaria tudo bem, uma vez que o acesso ao que sempre foi relevante lá fora não chegava com as mesmas dificuldades de tradução: vinha limpo e seco, pois era, sobretudo, uma ordem sintética em sua resolução final.

Eu, em 2021, passo por um problema similar no meu processo individual de entender a arquitetura, o Brasil e a mim mesmo. Passo pelo passado que não se concretiza e que quer ser afastado pela minha relação com o presente: um presente majoritariamente mais habitado por referências externas do que referências históricas. Nesse sentido, nem eu enquanto pessoa nem o Brasil enquanto país conseguimos ver com facilidade a linha reta que nos torna unidade de ação, protagonista dos efeitos e causas do que ocorre em nosso território, não somente interceptador, não somente um interprete da vontade dos outros com limitações de execução que sempre me relegam a segundo plano.

Pessoalmente, por anos, minha identidade foi totalmente forjada ao que metaforicamente entendo como uma indústria a moldes europeus e americanos. Meu gênero era uma referência externa, pois a modernização não prevê intenções específicas de quem se utiliza do conceito de gênero. Havia um gênero geral (ou mais precisamente dois gêneros gerais) e eu me utilizava de um deles porque criaram uma equação de a+b com resultado inviolável e fatores superiormente pré-determinado por uma classe dominante que de tão ínfima e numericamente insignificante, apesar de sua grande influência, passou anos tendo uma voz muda, cor transparente e estando tão mais alto que se confundiam com a noção de Deus pra mim. Minha sexualidade conheceu caminhos iguais. Meus gostos, minhas intenções humanas, minha ética, minhas crenças, meus estudos, meus trabalhos, tudo, tudo foi apropriado pela equação de a+b que impunha uma lógica com resultados contidos a um padrão desejável, de forma que eu não havia como questionar a matemática da vida que ia surgindo no presente.

Com o Brasil, mesmo após anos ao momento sofrido por Lúcio e pisando sobre um plano que também foi pisado por suas ideias que hoje se decompõe no mesmo solo que hei de me decompor, a mesma problemática de país de terceiro mundo segue assombrando os que notaram a necessidade de uma autenticidade legitimamente brasileira nas produções artísticas e arquitetônicas. Eu acredito que não nascemos dentro de uma noção cosmopolita com o dimensionamento consciente de que temos capacidade para montar a equação a nós disposta tanto quanto temos de nos utilizar dela, porque a equação é obra humana e não translucidamente divina, como faz crer nosso parco ponto de vista e o comportamento geral.

As vezes penso que a linguística é o instrumento mais próximo que nos faz, ainda que medonhamente comprometidos com esse comportamento geral e nosso lugar secundarizado no mundo, lembrar e incorrer numa autenticidade inevitável de sotaques e expressões, ademais outras fontes de individualidade que nesse falar vão se agregando. Mas não é uma tese que tenho como provar, é uma tese que sinto apenas com minha intuição analítica. Penso que a língua brasileira é o mais franco campo de batalha que ainda mantemos contra a nossa despersonalização. E esta empreitada está ancorada na autenticidade do nosso modo complexo e sentimentalmente mais expressivo de se comunicar do que o idioma americano. É através da linguagem que principalmente sentimos o estranhamento de ver a linha mais reta e mais lógica da industrialização geral ao passo que a linha que verte da gente, por ser turva, cheia de voltas, não espelha as mesmas características de composição.

Nia Ferreira
Enviado por Nia Ferreira em 20/12/2021
Reeditado em 20/12/2021
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