?/08/2021

O relógio branco da sala marca oito horas da noite, com um tic-tac que vai e vem desde sempre sem parar. Me parece um tic-tac mais alto que o comum. Talvez porque seja o principal barulho nesse lugar agora: junto dele só um bando de grilos no quintal, bem distante. A sala do relógio é retangular e comprida, com uma mesa retangular e comprida no centro.

Nem ascendi a luz, escorei um braço na parede e minha cabeça no braço, olhando fixamente pro chão. Atrás de mim está a mesa, do outro lado dela um armário baixo e robusto e em cima dele muitos retratos de bebês e de casamentos. Depois do armário está a parede da sala. Ela tem dois quadros, cada um com um sagrado coração, um berrante pendurado num prego e entre ele e esse par de retratos está o relógio branco. O barulho lembra um chocalho, é extremamente sucinto, vai de frente pra trás a cada tic e tac. Foi pra trás e me puxou prum lugar tão noturno e silencioso como esse, onde a anos atrás estava fazendo exatamente a mesma divagação sobre barulho de relógios, sentado na cama durante a madrugada. O ponteiro continuou, agora me levando pra academia de todas as minhas manhãs, porém vazia.

A cada passo mecânico dos segundos progride a sequência de cenários, todos familiares, porém limpos. Não há ninguém, nem mesmo eu, é só uma foto sendo trocada por outra. Elas me são familiares, mas não sei dizer se o sou a elas, se sabem que as observo passar como um slide, absolutamente alheio. A grande maioria dos rostos que deviam estar ali não lembro, se lembro não lhes conheço nada. Não sei do que me serve essa sequência ou pra onde me leva, não tenho o menor controle sobre ela.

Vovó está com uma xícara de frutas com granola no sofá da sala de televisão, que fica à minha esquerda. É alguém com quem convivo a anos, por isso constrange-me esse silêncio. Gostaria de ouvi-la, como da vez em que contou quando colhiam a mandioca, faziam polvilho pela manhã e de tarde o fritavam em quantidades massivas de biscoitos, divididos por irmãos, primos, tios, avós...

É longe, mas é importante que eu a ouça o quanto antes, sua morte não deve estar tão distante, quero guardar um pouco de memória. Não cortar cabelo em lua cheia, não limpar a casa em sexta-feira santa, quais sementes ou quais chás são bons para cada doença... Ando para fora e dou de cara com uma parede invisível. Eu tento sair da sala do relógio, como um bem-te-vi que vi na casa do meu avô Moacir querendo fugir, ficava em cima do puleiro mas num instante ia pro chão da gaiola, batia na grade, gritava; e nada acontecia.