Nascimento trágico

A luz não penetra na profundidade sanguínea das raízes que nutriram meu ser no raiar de minha existência. Tristes eram meus olhos mal-acostumados ao brilho do nascimento, por isso não é algum exagero falar que a energia da vida aqui do lado de fora cegou-me por instantes, o suficiente para que não me lembrasse do silêncio de minha origem, nem insistisse na descoberta de minhas reminiscências. A primeira grande angústia humana é desprender-se da matriz que gestou a superfície corpórea à qual nossa matéria e preceitos se vinculam. Não se pede para morrer, aguarda-se a morte como evento intransponível do viver. Da mesma forma, não se pede para viver, apenas aceita-se, sem a consciência primeira de sua raridade na improvável concepção de escolhido entre tantas possibilidades de continuação da existência humana. Vivemos por consequência de outros, pelo preparo de semelhantes a nós. Não há fuga nessa lei, nem alteração na ordem da receita. Há de ser assim, e ao sujeito que vem ao mundo, resta suprir o desejo de seus genitores, ou abarcar a culpa da desvontade de procriação, contradições do ato. O caos é digno do choro daquele que nada tem a ver com quem buscou o íntimo parentesco e um objeto de afeto incondicional, preço pago pelo projeto de vida que se inicia. Não se pode ser indiferente na afirmação de que ao garantir acima de tudo a vida, o ser não deve aos pais em última instância, o comportamento de gratidão desmedida, uma vez que não se anula o risco de uma vida de misérias, sofrimentos e empecilhos, cenário em que não se concretizam os desejos tão sonhados pelos pais antes mesmo do amadurecimento do fruto que transformaria seu ideal egóico em imperativo de realização. Há tragédia em vir a este mundo já maculado, sobram melancolias para serem choradas pelo filho do fórceps, que nunca pediu nada além de sossego para a alma em um recanto de celestial inexistência, distante da ciência sobre a vida e sobre a dor, dela indissociável, pois conceder um ser à luz, é entregá-lo ao mundo, o que é diferente de dar luz a um ser. É tão comum dizer que a mulher deu à luz um filho. A interpretação que pode ser feita, é a de que um filho foi lançado para a luz, desembocado na vida a partir de suas entranhas, e a partir de então, o mundo se alegra em recepcionar o recém-chegado/recém-nascido. Ou seja, tal expressão evoca que gerar uma vida é um favor em prol da perpetuação na Terra, desconsiderando-se o desejo central da criança de fazer-se e de ser no mundo, não atendo-se a seu egocentrismo, mas sim ao ideal de sua independência. O ponto nevrálgico da questão reside na valorização suprema da vida, em uma ideia de que apesar de tudo, viver ainda é a melhor opção, já que posses, posições, sentimentos e situações são desimportantes diante do fato de estar vivo, tal milagre de fecunda fundação abranda toda e qualquer aflição, é um consolo vital àquele que nunca lucrou com o preço inexpressável de existir.

Flora Fernweh
Enviado por Flora Fernweh em 02/03/2022
Reeditado em 02/03/2022
Código do texto: T7463807
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