[FILOSOFIA, MITOLOGIA, LITERATURA] ORIGEM TELÚRICA NA MARGEM DO RIO

O homem é o que está vivo. O homem é originariamente irreligioso, eis sua essência mais recôndita. O animal para a vida do barro e da terra e moral. Zeus nunca é nosso responsável, i.e., nunca pagamos o preço pela venda da alma na fábula (nun-ca-veiramos, hamletianamente). Cristo como o não-homem (uma [cur]iosid[a]de).

Se uma moeda fôssemos, a Cura seria o valor ou o trabalho de oficialização estatal sobre o metal responsável por inseri-la em circulação (em qualquer ponto do ciclo).

COMENTÁRIOS EXPLICATIVOS:

A "venda da alma" ou o "pagamento de uma dívida" existem em todas as mitologias e religiões como tropo. Na lenda de Fausto, imortalizada por Goethe, o protagonista vende a alma para Mefistófeles, o diabo. Na mitologia grega, e particularmente na fábula de Higino (poeta latino), o primeiro homem nasce após um acordo entre três divindades, Cura, Júpiter (o Zeus romano) e Tellus (deusa da Terra ou do Solo e do Destino). Nesta fábula nós também nascemos do barro, como no relato do Gênesis. Cura esculpiu nosso corpo na argila à beira de um riacho; Zeus dotou a argila morta de espírito; mas foi à própria divindade do solo que coube nos batizar, afinal foi a matéria-prima da criação: somos humo. O homem é humo. E foi o Deus do Tempo, pai destronado de Zeus, Saturno ou Cronos, quem deu a cada um dos três deuses o que lhe era de direito: arbitrou a questão. Zeus será Mefistófeles neste caso: recolherá o tributo na hora de nossa morte, porque nos deu a vida. Zeus terá nossa alma para toda a eternidade após findarmos. Tudo que nos é tangível é de Tellus. Mas e Cura? Sem Cura nada teria sido feito, não haveria homem, apenas humo sem alma. Cura ganhou jurisdição sobre nós, desde que nascemos, até o dia de nossa morte, antes de devolvermos nossa alma a Zeus em paga pela vida de que desfrutamos. Mas, como depois que morrermos não seremos mais homens, diz-se que nunca pagamos nada a Zeus. Não somos espírito, não somos carne, senão carne-e-espírito. Enquanto estamos na Terra, nosso solo, nosso meio, criamos nossa própria moral para viver, preocupamo-nos conosco, e achamos um sentido (o que se denomina desde então cura). Hamlet de Shakespeare é aquele que perde tempo refletindo sobre quando não mais será, segurando um crânio humano. Mas são apenas ossos, não é homem. A caveira é apenas como o humo. "Cá" vivemos, apenas sendo, deixando ser e não-ser, oposições estéreis, para os outros. E é por isso que para Hamlet era indiferente "pagar a dívida de sangue que tinha com seu pai, matar seu tio e morrer". De qualquer maneira, o príncipe dinamarquês se regia pela cura. "Nun", Alemão para agora, é nosso tempo, nossa vigência, como sabe o juiz Saturno. Cristo, por outro lado, não era humo; ou antes só era digno do epíteto homem enquanto vivo. Quando retornou ao Espírito Santo (seu Mefistófeles particular), já não se curava de nada. Seu sacrifício nada significa. É um evento histórico de interesse para os homens enquanto viventes. Mesmo que Jesus tenha sido uma criatura mortal, nada há de mais antagônico em relação ao homem nascido daquele consórcio pagão. Nosso juiz é meramente o tempo, não o trovão (a arma de Zeus), neste e não noutro mundo. O tempo é um círculo, e nós nos atribuímos nosso real valor quando entendemos a fábula de Higino, em qualquer ponta da vida passageira, às margens da umidade e da correnteza.