Normose: a neurose da normalidade

É tão estúpido o medo de ser visto como alguém estúpido, que nos submetemos ao rotineiro maçante e à inércia de uma vida comum que preza pela mediocridade. Por quê? Nos disseram que ser além do que se é, abre as portas para a loucura, quando na verdade ela se confunde com extraordinariedade em um discurso vazio. E ser menos do que se deveria ser, é o fracasso em um meio em que ser e se autoproclamar normal é visto como um sucesso, enquanto que a higidez mental ainda é sanidade de quem naturalizou as inutilidades da vida em sociedade, que também é encarado como alienado.

Estamos tão acostumados com a normalidade que involuntariamente vivemos sob sua ditadura, e ainda somos capazes de exterminar todo resquício de singularidade que nos torna diferentes um do outro, no mais amplo sentido do termo. A ânsia por ser normal e ser assim reconhecido por estar inserido na vida profissional e pessoal comum, e em um mercado de trabalho que prega a uniformização, nos conduz a um bem-estar que não é genuíno, mas regado pelas aparências daquilo que é ditado. Mas afinal, o conceito de normalidade é construído por meio dos costumes e se reformula com o passar do tempo. Somos inevitavelmente filhos de nosso tempo, não se pode fugir dessa realidade. A questão é: qual o preço a se pagar para ser visto como um cidadão normal conforme os valores que nos são exigidos?

O consenso social visa à manutenção da ordem, e encontrou na normalidade excessiva um meio de garantir a estabilidade e evitar possíveis rebeldias suscitadas pela falta de padrão. No entanto, não é difícil concluir que a palavra “normose” carrega um tom patológico em sua pronúncia, e mais ainda, tal fardo se aprofunda no campo da semântica, posto que seu verdadeiro e cru significado, remete à doença do ser normal, que acarreta doenças psicossomáticas e distúrbios do novo século, como a depressão, tristeza, e crises existenciais. Não é fácil livrar-se de amarras, às quais nos acorrentamos antes mesmos do menor nível de cultura. É justamente esse o motivo que nos impede de visualizar a normalidade como fenômeno nocivo, em um mundo acentuado pela busca incessante de aprovação e aceitação de um Outro que nunca teve tanta importância quanto hoje tem.

Ao mesmo tempo produto e incentivador da normose, se estabelece o consumismo, tal fenômeno é digno de estudo, pois passou a ser colocado no nível de status social. Seu grande enigma é o fato de desviar gostos pessoais em prol de produtos ou serviços que estejam em alta no meio comum. Assim, temos uma parte de nossa personalidade relativa ao gosto pessoal, modificada, ao passo em que modificamos jeitos e preferências dos demais indivíduos, o que cria um ciclo infinito e sem volta, até que a próxima tendência o distraia e tudo recomece.

A normopatia causa sofrimentos ao restringir a livre-expressão. Nos tornamos os próprios fomentadores de nossos problemas, já que apesar do impacto da opinião coletiva, é ainda sobre nós que recai o poder de agir, e agindo de modo a contribuir com a normalidade geral, o eu autêntico se torna oprimido. A obsessão em ser normal, não é normal, é neurótica, tal qual a sociedade que a estimula. Sim, há um mundo lá fora, mas há um mundo aqui dentro que precisa ainda mais de nós, distante de maiorias e de pressões comportamentais. Há um mundo livre dentro de nós, esperando para ser descoberto e desenvolvido, onde fingimento algum nos fará pertencer a determinado grupo, e onde nenhuma ideologia ou religião será capaz de banir você com todo o seu arsenal de subjetividade. Não é tão normal nem tão comum aceitá-lo, é por isso que tantos o desconhecem em sua beleza e unicidade. Muitas atrocidades já foram cometidas em nome da normalidade, e num piscar de olhos, tudo foi revisto e modificado. É hora de despertarmos nosso senso crítico conosco e com nosso redor, apreciando toda anormalidade que promova o bem em conflito com toda normalidade que discrimine as diferenças.

Flora Fernweh
Enviado por Flora Fernweh em 27/05/2022
Código do texto: T7525197
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