Doblô Verde

Há alguns anos, num momento de imenso vazio existencial, decidi frequentar uma igreja evangélica, dessas de bairro.

Havia poucos membros e a maioria deles eram idosos.

O pastor era um homem de meia idade, bem articulado, andava sempre bem vestido, terno sempre bem passado, sapato lustrado e gel nos cabelos.

Havia também a esposa do pastor. Uma mulher que aparentava ser mais velha, não tão arrumada quanto o marido. E que vivia chorando pelos cantos por conta das brigas com o marido.

A igreja era aberta às 19:00h. Por volta das 21:00h, o pastor chegava junto da esposa e ambos entravam pra um quartinho onde ficava o cofre que guardava os dízimos e ofertas dos fiéis.

Por volta de 21:30h, o culto acabava, os idosos voltavam pra suas casas e o casal ainda ficava lá.

Na porta da igreja ficava estacionado um Doblô do pastor, de cor verde musgo.

Um carro grande que poderia levar os idosos para casa, mas esses iam a pé.

Minhas observações me incomodaram e comentei com uma senhora que também frequentava a igreja e morava perto da minha casa.

Começamos a conversar e descobri que o pastor não trabalhava. Ao perguntar como ele se sustentava, ela desconversou.

Os dias foram passando e a dinâmica dos cultos era quase a mesma.

Eu disse “quase” porque em alguns dias, o pastor resolvia subir ao altar e falar algumas palavras, principalmente, reforçando a necessidade do pagamento dos dízimos porque, segundo ele, “dizimar agrada ao senhor”!

Os dias viraram meses e tudo continuava igual.

Aquela situação já estava se tornando insustentável e, numa noite após o culto, expressei minha indignação com a senhora que frequentava a igreja. Foi então que ela resolveu falar.

Ela também já estava exausta e disse com raiva: “Ele rouba da gente!”.

Àquela altura não era nenhuma novidade, mas precisavámos fazer alguma coisa pra que aquele absurdo acabasse.

Foi aí que a senhora teve a ideia de enviar um e-mail à sede da igreja denunciando tudo e pedindo providências.

Dias depois, e enquanto o tal pastor e sua esposa estavam dentro do quartinho do cofre, chegaram umas pessoas e foram entrando na igreja.

Todos se viraram curiosos, exceto a senhora que já os aguardava.

Aquelas pessoas eram os fiscais que acompanhavam as igrejas e foram até lá por conta da denuncia.

Quando o pastor os viu, ficou tão desesperado que começou a gritar e xingar, perdendo completamente a compostura.

A esposa do pastor que, até então, era tão humilde, tomou partido do marido e começou a xingar também.

Os dois se entregaram no ato e ficou óbvio o que todos já sabiam.

O casal vivia às custas dos fiéis. Pessoas idosas e pobres.

Após mais insultos e xingamentos, o casal se foi mas, na madrugada, entraram na igreja e limparam o cofre.

Por fim, o homem e a esposa forma expulsos da igreja e ficaram desmoralizados por toda a cidade.

Meses depois, como eles deixaram de pagar o aluguel foram expulsos da casa onde moravam e tiveram que vender o Doblô. A mulher teve um infarto.

Nunca devolveram o que roubaram nem responderam a processo. Nunca pediram sequer, desculpas.

Escrevi esse texto pensando nesse caso que vivenciei e nas inúmeras histórias parecidas que já ouvi.

Quantas pessoas em nome de deus, têm roubado, matado e destruído?

Reflito e me pergunto se é possível criar novas formas de existir nas quais o dinheiro e o poder, não sejam o centro de tudo.

É possível?

Lilian S Gonçalves
Enviado por Lilian S Gonçalves em 13/08/2022
Reeditado em 13/08/2022
Código do texto: T7581730
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