Negro sou

Recentemente a série “A Casa de Papel” da Netflix fez um enorme sucesso, mundialmente. Um grupo de assaltantes invadem o Banco Central Espanhol e fazem todos os funcionários como reféns. Cada assaltante tem o nome de uma cidade. No desenvolvimento da trama uma das funcionárias, Mónica Gaztambide, acaba se afeiçoando pelo personagem “Denver” e foge com o ele após o fim do assalto, passando a fazer parte do grupo. Não sem razão, ela foi batizada como “Estocolmo”, em referência clara à “Síndrome de Estocolmo”, caracterizada por um estado psicológico de intimidação, violência ou abuso, em que a vítima é submetida pelo agressor, porém, ao invés de repulsa, cria simpatia ou até mesmo um laço emocional forte de amizade ou amor por ele. Trata-se da representação de um caso verídico, ocorrido em Estocolmo em agosto de 1973, quando uma refém se apaixona pelo assaltante.

É exatamente o que acontece no mundo todo, relativamente à colonização européia. Passamos a admirar tanto nossos invasores, que até buscamos desesperadamente sermos o mais parecidos possível com nossos algozes. Mas não existe janta grátis. Na vã tentativa de sermos européus, vendemos ao diabo nossas almas, nossos valores, e porque não dizer: nosso brio na cara. Passamos a estigmatizar violentamente o oposto necessário do colonizador europeu “civilizado”, os povos nativos tido como selvagens (índios), e os povos que foram escravizados para viabilizar o desenvolvimento branco, os negros. O termo grego “Stígmata” significa estigma, marca ou cicatriz deixada por uma ferida. O racismo é uma chaga aberta na nossa carne.

A obra “Os condenados da terra”, de Frantz Fanon trata exatamente disso: a violenta e sistêmica aos filhos do berço da humanidade, a África multiétnica, sua cultura, seus costumes, suas cores e sua gente. Um mundo pálido e demonizador escolheu o povo africano para ser os demônios contra os quais toda sorte de humilhação, agressão, violência, estupro e morte nunca seria o suficiente, e nunca teria fim. No Brasil a escravidão acabou em 1888 - pelo menos no papel, para inglês ver. Mas pasmem, que o último país só acabou oficialmente com a escravidão em 1981 – Mauritânia.

Entre 1500 e 1808, haviam 2,5 milhões de indígenas no Brasil. Chegaram nesse período 500 mil europeus, e 4 milhões de negros escravizados. Os brancos contribuíram com nossa miscigenação em apenas 7%, ainda assim atualmente apenas 11% dos brasileiros se assumem negros, enquanto 43% de nossa população insiste em se afirmar branca, em uma atitude desesperada para identificar qualquer traço europeu por mínimo que seja, ou encontrar algum parente europeu, por mais longínquo que seja, para podermos nos “purificar”.

Está na hora de decolonizarmos nossas almas, de soltarmos o brado retumbante de Victória Cruz: “negro sou”. Sim, sou negro, e daí? Somos índios, negros, mulatos e cafusos, e é exatamente essa mistura de raças, credos, cores, sabores e culturas, que torna o Brasil continental tão rico, tão lindo, e tão forte. Como diria Langston Hughes chega de comer na cozinha. Quem quiser visitar nossa casa que aceite se sentar à mesa com todos os nossos irmãos, do mais branco ao mais preto.

Sacudamos o jugo de nossas costas. Sejamos buscadores, procurando sempre, sempre...