Ninho

Queria me ver possuído pela gramática pelas palavras e pelo tanto que se tem a ser dito neste mundo, pois cederia meu corpo gentilmente a esta erupção, cederia meu corpo com facilidade a qualquer sobrevoo de desejo com nobreza o suficiente, cederia ao outro, entregaria displicentemente, sucumbiria, agonizaria, e mesmo passaria pelos piores processos de privação, porque há sentido, sentido que não posso criar - o sentido do outro - sentido que não me cabe dizer que sim ou não, contrariar e tudo mais, apenas imagino e não imagino, sucumbir e resistir, me entregar e arrepender, pois minha carne é mole, minhas mãos sonham e meu dedo assina antes que a informação chegue aos pés, (quando sabem querem se virar e correr como se não fossem parte desse tudo que se entrega e se desnuda), não conversam com o resto, e tenho que lidar com a enorme contradição: um já não pode viver na condição do outro e concordam em co-habitar para continuarem vivos, mas a que custo? A que custo se estende a palavra e a frase, a que custo chegamos ao consenso inteiro de todas as partes sem ter que matar outra friamente, como se o desejo implicasse em algo como maioria sobre o todo, besteira! Sobre o todo alarga a vontade genuína de ser uma coisa só que define todo o resto e é pois então que me entrego, me entrego fielmente ao primeiro que passar na rua, aos seus desígnios, me entrego ao sorteio, me entrego, nada nunca me pertenceu, me falaram isso e isso é a maior mentira que existe e eu tenho uma noção cada vez mais científica dessa mentira, cada vez mais testada e comprovada, no entanto a sensação perdura e o que é essa sensação, tão legítima quanto o gosto da verdade calculada, o que é o mundo senão uma impressão geral, o que seria dele se não a tivéssemos, o que seria do mundo sem esse impulso gigantesco que parece que é a própria mão que o rotaciona segurando as duas pontas do eixo, eis-me então a própria mão com minha própria força e é preciso fortificar-me, me armar e reconhecer meu potencial bélico para afetar as coisas, por mais que esta tenha sido a razão que me fez parar tudo: saber demais que movimento demais, mas na verdade todo mundo em potencial talvez me ultrapasse, eu apenas me recuso, as vezes me entrego, mas por natureza recuso tudo, por natureza tenho uma pele tão porosa que não existem mais muitas diferenças entre eu e tudo que me cerca, mas as pessoas que são opacas, sólidas e maciças me enxergam diferente como se não vivessem em mim, como se não me respeitassem, como se eu não estivesse na cabeça delas solidificado através das paredes delas, como se eu não estivesse nos pelos dos seus narizes nas pontas de suas vontades, como se eu não existisse no meio dos seus cérebros rosados e artomentados, eu não sou sua tormenta! Pare de me confundir eu não sou a razão de todo mal, você que andou se matando, foi você, você pegou uma arma e apontando pra minha cabeça não contava que também estaria apontando para a sua, que se mataria tão primordialmente, vou repetir, eu estou em você eu sou o mundo, eu nasci do mundo e não pude resistir a ser parte dele, eu sei que me pediram, não pude, não pude, não pude e eu amo isso amo tudo amo como você nunca nunca vai poder amar nada desse jeito que eu amo porque vejo o quão patético você é e quanta energia tive que gastar para estar aqui e te falar isso, mas não se preocupe, tudo acaba eu realmente não tenho mais valor que você nem acredito nisso, vamos beber, comemorar, se sente comigo na mesa me conte seu dia eu vou ouvir tão passivamente com as pernas cruzadas com as mãos entrelaçadas me inclinando em sua direção, e fácil bem facilmente você sentirá como que vermes abrindo buracos na sua carne, mas você estará ao contrário do apodrecimento estará como que ao contrário da decomposição, morrendo além da vida, quase sendo gerado pelas sobras de espaço pela fissura pela entrega desta vez entrega a si, entrega a não querer morrer desvinculado da vergonha, sozinho com pele de azulejo e chão gelado, isso é minha referência, sumir e é dia de chuva, deitar, e o vento me toca, a luz sobe pela janela, se estende e se recolhe no chão e assim o dia passa, é muito muito fácil fazer o dia passar fazer as pessoas passarem fazer a realidade convergir sem que sua cabeça não esteja vendo nescessariamente algo, mas também sem esquecer que é muito importante ver e haverá tempo para isso, assim como haverá tempo para que a luz se levante do chão e a gente também.

Nia Ferreira
Enviado por Nia Ferreira em 20/03/2023
Reeditado em 20/03/2023
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