Pensamentos em Óleo Fervente

Muitos são os desafios nos impostos pela vida nessa jornada pelo tempo. Na última noite me vi de frente para um deles, estupidamente simples e profundamente agonizante. Minha esposa não se sentia bem devido à enfermidade que açola o início desta década, e me deparei com o desafio de cozinhar uma coxa de frango, como poucas vezes o fiz na vida.

Em meio aos estalos iniciais do óleo fervendo, não estremeci, mas ao notar o ressoar dos disparos desta baioneta química em meio a madrugada, senti a confiança se esvaindo. E comecei, então, a sentir os respingos queimando o braço.

Após alguns minutos, o som se tornara os cânticos de guerra dentre tiros e estouros, e o medo das possibilidades começou a tomar conta do meu ser. De repente, percebi que já não era como se estivesse no controle da situação, e repassei, na minha mente, um diálogo recente que tive com uma velha amiga, acerca da sensação de controle tão necessária para a tranquilidade do ser humano.

Em meio a propagação dos tiros, me questionei das possibilidades de erro no processo que eu executava, e entre imagens mentais de incêndios, queimaduras graves, explosões de gás e outros acidentes, me vi em confronto com a incerteza. Num suspiro foi como se enfrentasse a mais pura indiferença das leis que regem o universo, e erguido pelas mãos do próprio caos rastejante, vislumbrasse o quão longe eu estava de controlar a situação. Me tornei um pequeno indivíduo tentando controlar imperadores naturais anteriores aos mais longínquos éons.

Sugado pelos meus pensamentos, minha atenção ja não mais se focava na tarefa que deveria realizar, e me dei conta de que tudo o que estava fazendo (ou deveria me concentrar em fazer) era tentar influenciar o comportamento daqueles corpos físicos reagentes em alta temperatura de forma que o caminho trilhado pelas suas partes constituintes não terminassem em um trágico cenário.

E existiria um cenário não imaginário onde isso não seja tudo o que está ao alcance das nossas ações?

Em tudo que fazemos, apenas tentamos influenciar o acaso para que este tome o caminho menos desconfortável, e, por vezes, menos trágico.

Em todas as relações e ações de nossa vida, o controle é uma ilusão, uma utopia. Persegui-lo incessantemente é fonte de angústia e ansiedade em nossos corações. E quando o acaso acaba por se mostrar como a decisão de terceiros, a tentativa de controle nos leva gradualmente ao totalitarismo. Atrelando o controle à segurança, nos vemos tentados a controlar tudo que nós mesmos, individualmente, vemos como ameaça, e se nós mesmos não vamos a controlar, que alguém, pelo menos, controle. Nessa busca por segurança abrimos mão, grão a grão, de nossas liberdades, até o ponto onde figuras centrais têm de tomar, por nós, as decisões de como devemos executar tarefas tão relevantes para nosso desenvolvimento como ser.

No atual nível dos estrondos do óleo fervendo, quisera eu ter uma autoridade no assuunto me passando ordens e diretrizes claras, precisas, e intransigentes sobre como fritar o frango, colocando entre elas a proibição de refletir sobre coisas que não sejam o frango.

Dos reagentes químicos que compõem um pedaço de ave morta numa panela de óleo às decisões que nossos entes queridos tomarão, a busca pelo controle e pela previsibilidade nos aflige e açoita como queimação na alma, e das relações de trabalho às operações comerciais o medo da incerteza nos desumaniza e escraviza.

Em nenhuma ação há real controle humano. Lutar contra esse fato é lutar contra a natureza das coisas, e isso, psicologicamente ou socialmente, corrói pouco a pouco. Afinal, a indiferença cósmica é o imperador da existência, e lutar contra as regras da nossa realidade não pode trazer nada de bom.

Ao fim da minha tarefa, o frango não estava bom, mas também não estava péssimo. Enfim, havia sido consideravelmente bem sucedido em influenciar os eventos na direção do meu objetivo final, e não dessa vez uma imagem horrível se tornou realidade por meio do imprevisível.

Ao fim da noite, ainda sentia o excesso de sal no paladar, o fogão precisava ser limpo, e eu havia aprendido uma nova habilidade de influência sobre a matéria.

- 2° Trimestre de 2021

Nicolas M Cunha
Enviado por Nicolas M Cunha em 29/03/2023
Código do texto: T7752047
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2023. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.