Solilóquio a um padrinho

Haja vista que o inferno ou o céu depende de nossas escolhas, e acreditando que podemos tocar humanamente o céu ou o inferno a cada dia conforme nossas ações, pensamentos, sentimentos, enfim, e considerando que nascemos nus e sozinhos (mesmo no caso de gêmeos, é um por vez) e partimos nus e sozinhos, sinto a necessidade de soliloquiar para externalizar, não com as paredes, mas com a página em branco, muito do que sinto/senti e vivo/vivi nessa vida, não porque considere tão importante assim o que tenho a dizer, mas sinto ser importante dizer, falar, escrever, colocar para fora, desfragmentar (como a um disco rígido de computador), compartilhar – ainda que comigo mesmo ou com público posterior incerto.

Prezado Padrinho,

Não acredito que eu guarde propriamente mágoas do senhor, mas guardo lembranças, algumas muito boas, e uma em especial que me marcou muito, como se marca um gado com ferro em brasa: a dor da brasa uma hora se vai, mas a marca fica no couro do gado até ele ser abatido, concorda?

Comecemos pelas lembranças boas (algumas ótimas): lembro-me de eu estar, numa noite, numa parte chique de sua casa (acho que era a sala de estar), o senhor sentado numa poltrona confortável, meu pai sentado em outra, eu no meio de vocês brincando no tapete da sala com um joguinho de boliche de plástico, simples, mas que me entretinha muito, acredito que presente do senhor. Muito obrigado por aquele presente.

Outra vez, lembro que o senhor me presentou com um cheque (ou deu para meu pai e disse que era presente meu) e eu fiquei super empolgado, não pelo valor do cheque (que não lembro) nem por ser um cheque, porque na época eu não sabia para que servia um cheque, como se comprava usando cheques, só sabia que cheque representava dinheiro, que dinheiro podia comprar coisas e que era importante, então me senti importante, porque o senhor me deu uma coisa que era importante.

Lembro também de quando o senhor e sua família moravam em outra casa, perto do bar do seu M., e lá, na sua casa ou na minha, eu abri um pacote de presente e havia o helicóptero daquele grupo de aventura (dos desenhos dos anos 1980) Comandos em Ação. Era um helicóptero verde, cheio de detalhes, arminhas, com alguns bonequinhos (que eu chamava de hominhos), um presente maravilhoso, que eu amei de paixão. Não lembro se pedi o presente ao senhor ou se o senhor me deu por iniciativa sua, mas gostei muito. Pena que, com o incêndio da nossa casa, em 1º de janeiro de 1990, perto das 10h00 ou 10h30 da manhã e que não durou cinco minutos, o tal helicóptero ficava em cima do guarda-roupa dos meus pais e, quando o fogo o consumiu, foi como esquentar um tablete de manteiga na frigideira, derreteu tudo. Dos escombros não salvei nada meu nem da casa, mas curiosamente o pai conseguiu salvar muitos papéis (basicamente, apenas papéis) que, mesmo bem chamuscados, ainda me refrescam a memória do incêndio vez ou outra e o cheio de papel queimado.

Lembro também das várias vezes que eu, uma irmã e meu pai, entre 1990 e 1994, fomos várias vezes à prefeitura da cidade para atender chamados de consertos de máquinas de escrever (saudades dessa época!), então entrávamos os três na sala do seu pai, que não lembro que cargo ocupava, e que era um senhor de idade muito gente fina, querido, sorridente, que nos tratava muito bem, sempre nos oferecendo cafezinho com leite, ou então às vezes fugíamos eu e minha irmã para a cozinha desse setor e a moça (uma senhora) sempre preparava chá Mate-Leão batido no liquidificador só com gelo e açúcar, o gosto era divinamente refrescante e saboroso.

Mas houve um incidente que me magoou muito certa vez e me marcou para sempre. Meu pai tinha o costume de aparecer no seu gabinete na prefeitura para falar com o senhor, e eu sempre ficava na cadeira de espera conversando com a secretária. Ocorre que, certa vez, eu comentei com meu pai que gostaria muito de ter uma bicicleta, humilde que fosse, da mais barata, que fosse usada, só para eu fazer o trajeto de casa para a escola de manhã e, em seguida, da escola para o porto da cidade, onde graças a Deus consegui um emprego de carteira assinada, com 13 ou 14 anos, como office-boy no prédio administrativo.

O pedido da bicicleta o pai resolveu repassar ao senhor, e a resposta foi demorando, demorando, até que, não lembro ao certo, eu estava na sala de sua secretária e ela me falou de um jeito muito ríspido que o senhor havia mandado falar que eu era o afilhado mais pidão e chato que o senhor tinha. Tudo bem que eu já era adolescente, mas não tive capacidade mental para sublimar rapidamente este comentário infeliz e desnecessário.

Posteriormente, sei que a bicicleta (humilde e usada, como eu já esperava e desejava) me foi entregue (tudo feito sempre por sua secretária) deforma breve e nada amistosa, e seu uso durou menos de 5 meses, logo logo ela enferrujou de um jeito que tive que encostá-la lá para os fundos do terreno onde morávamos.

Lembro ainda que, ao me preparar para sair do porto e vir morar com minha mãe em Santa Catarina, minha chefe, dona G., intercedeu por mim (não lembro se eu pedi ou se ela tomou a iniciativa) e a mando do Dr. A. R., a quem sou MUITO grato e respeitava muito como chefe geral administrativo, fui agraciado com uma bicicleta vermelha barra circular (pesada, acho que da Caloi, os freios eram nos pedais). Trouxe muito contente essa bicicleta para São José, mas, devido à quantidade de morros (a minha era é uma cidade reta) e às distâncias, achei por bem dar (ou vender?) a um primo do meu padrasto (na época, entre 1995 e 1999), depois comprei uma bicicleta azul de 18 marchas de uma vizinha (por um preço módico) e depois troquei a bicicleta por uma máquina de escrever, onde datilografei meu primeiro e segundo livros. Estávamos adentrando a época do computador e da internet no Brasil.

Dito tudo isso, quero que o senhor saiba, padrinho, que o senhor me proporcionou momentos maravilhosos, aos quais sou grato, mas mandar sua secretária me dizer (braba) que eu era seu afilhado mais chato e pidão eu não conseguirei esquecer por um bom tempo. Quero que saiba também que ainda lembro com MUITO carinho da madrinha, com quem não convivi tanto tento quanto com o senhor. Quanto aos seus filhos, só conheço por fotos antigas. Desejo que tenham se encaminhado bem na vida e que a madrinha esteja bem de saúde. Fique com Deus, perdoe-me as ofensas que eu tenha lhe causado e sinta-se perdoado pela crítica infeliz que me fez.

Se este desabafo nunca chegar ao senhor, que ao menos chegue a outros padrinhos e madrinhas brasileiros e seus afilhados, para que ambos os lados consigam resolver com amor e empatia o que eu ainda não consegui resolver com o senhor enquanto dividimos o mesmo planeta azul. Fique bem. De verdade.