Não dá para acreditar

“Desconfio das pessoas que dizem saber qual é a vontade de Deus, pois, geralmente, isso coincide com os próprios desejos dessas pessoas”.

Susan B. Anthony

Muitos anos atrás, quando eu era muito jovem e estava voltando da escola, tive o azar de ter o encontro com um assaltante que tentou levar minha mochila. Felizmente, duas pessoas conseguiram assustá-lo e eu, além de sair ilesa, não perdi minha mochila. Minha mãe, após saber do incidente, disse que Deus havia me dado um livramento. Na época, eu acreditei que Deus realmente tinha me concedido um livramento. Porém, com o tempo eu – que nunca consegui deixar de questionar – fui me fazendo perguntas sobre o fato de Deus supostamente dar livramento a uns e não a outros. Pensei nisso principalmente ao ver, tanto na televisão quanto nos jornais ou na Internet sobre pessoas que são assaltadas, estupradas, assassinadas ou que sofrem horríveis acidentes que se não as matam deixam inválidas para o resto da vida.

E essa questão do livramento me voltou à mente quando eu contei a uma senhora(que depois me contou que era evangélica) que estava chateada por não poder ir ao Parque do Povo na minha cidade para ver o São João por causa de problemas financeiros que tenho enfrentado. A senhora, então, disse que tudo era Providência Divina e que Deus com certeza estava me livrando de algo terrível, pois nessas festas costumam acontecer muitas coisas. Então, por que Deus não salva crianças de serem abusadas, seja por desconhecidos seja por pessoas próximas que deveriam cuidar de seu bem-estar? Então, Deus faz acepção de pessoas? Dá para acreditar no que muitas dessas pessoas religiosas dizem? Dizem que Deus é o nosso Pai e ama a todos nós. Um pai humano que – com todos os seus defeitos – ama todos os seus filhos não irá fazer tudo por eles para que não sofram nenhum mal? Pelo que entendemos de amor, uma pessoa que ama outra não irá permitir que ela passe por uma experiência que possa lhe causar sofrimento. Assim sendo, como podemos conceber um Deus que, sendo perfeito e acima de todas as limitações humanas, socorre logo uns filhos e deixa outros sofrendo? Histórias como as de Isabella Nardoni, Bernardo Boldrini, Lucas Terra, Daniella Perez e tantas outras pessoas que morrem de forma cruel estão aí para fazer a história do livramento divino cair por terra.

Outra questão que nunca achei satisfatória foi a de que Deus nos testa. Muitas vezes, disseram-me que tudo que eu passava era Deus me testando, que Deus testava mais os que Ele amava mais e que, quando Ele vê que a pessoa não está mais aguentando a provação Ele dá o livramento. Vamos nos fazer umas perguntas. Se Deus nos testa, onde está a Sua onisciência? Com certeza, estes questionamentos não agradarão aos religiosos mas é preciso fazê-los, deixando claro que tal texto não pretende atacar a fé de ninguém. E por que um Ser tão perfeito sentiria necessidade de nos testar? O que diríamos de um pai ou de uma mãe que testasse um filho, deixando-o sofrer e não o socorrendo, mesmo podendo tirá-lo do sofrimento? Pensamos nisso especialmente quando nos dizem que Deus nos testa para ver até onde aguentamos. Se os pais testassem os filhos para ver até onde eles aguentam, nós diríamos que eles amam os filhos, que são pais que se importam com os seus rebentos? Além disso, qual é a lógica de Deus testar mais aqueles que Ele ama mais? Se um pai ou mãe tem preferência por um filho, parece lógico que esse pai ou essa mãe vá permitir que esse filho sofra ou torne a vida dele tortuosa? Obviamente, os religiosos dirão que Deus é misterioso e não somos capazes de entender as Suas motivações. Realmente, não dá para entender um Ser que dizem ser puro amor que tem necessidade de testar os Seus filhos. Também é incompreensível que Ele fique nos vendo sofrer para ver até onde aguentamos para só então decidir – se for da Sua vontade – nos socorrer. Se um ser humano fizesse isso com outro ser humano, não hesitaríamos em chamá-lo de sádico e desumano. Nenhuma pessoa com o mínimo de compaixão ficaria vendo outra sofrer sem fazer nada. Considerando as muitas pessoas que cometem suicídio, o que podemos concluir? Que Deus não quis socorrê-las? Que Ele não soube calcular o quanto elas eram capazes de aguentar? Ou que Ele sabia que elas não aguentariam e não se importou? Sei que isso desagradará a muitos crentes mas não dá para deixar de fazer tal pergunta. E, antes que alguém diga que depressão – a principal causa do suicídio – é “falta de Deus”, lembremos que muitas pessoas deprimidas acreditam em Deus e são religiosas. Se depressão fosse apenas “falta de Deus” não haveria padres e pastores enfrentando essa terrível doença que nos tira a esperança e a alegria de viver.

Algumas vezes, quando eu falava com minha mãe sobre o meu desejo de casar, ela dizia que podia ser que Deus me quisesse solteira para que eu não sofresse nas mãos de um marido ruim. E, se eu me interessasse por alguém que ela não gostava, tanto ela quanto a família dela diziam que eu não devia procurar namorado mas orar e pedir a Deus que me mandasse a pessoa certa. Na época, eu cheguei a dizer que tal coisa era um absurdo, pois Deus não iria mandar a pessoa certa, como um príncipe encantado, cair de paraquedas na minha casa. Hoje, olhando para trás, vejo claramente o absurdo de tais afirmações. E ver tantas mulheres que apanham dos maridos me faz perguntar por que Deus se preocuparia em poupar a mim e não teve a menor preocupação em poupar essas mulheres, afinal eu não sou melhor do que elas. Ainda não podemos deixar de nos perguntar por que Deus determinaria que umas pessoas poderiam casar e outras teriam que ficar solteiras. Isso nos faz perguntar novamente se Deus faz acepção de pessoas. Onde entra o livre arbítrio de que os crentes tanto falam já que seria da vontade de Deus que uns casassem e outros permanecessem solteiros?

Outros argumentos que os crentes usam muito quando não conseguimos algo é o de que Deus está preparando algo melhor para nós, o de que Ele tem coisa melhor reservada para nós. Eu ouvia bastante isso quando estava cansada de ficar só estudando para concursos e dizia que queria ir atrás de qualquer emprego, mesmo que fosse abaixo do meu nível de educação. Mãe respondia que eu não devia ir atrás de empregos para os quais eu era muito qualificada e que eu devia continuar apenas estudando e esperar com paciência porque Deus tinha emprego melhor reservado para mim e me daria no tempo certo. Analisemos esse argumento. O que a realidade nos mostra? Que emprego não vai bater na porta da nossa casa. A pessoa tem de ir atrás, lutar para conseguir algo. Na situação em que o Brasil agora se encontra, ninguém pode se dar ao luxo de ficar esperando que o emprego certo venha ao seu encontro. E não são poucas as pessoas que acabam trabalhando em áreas diversas das que se formaram, tendo que se contentar com empregos abaixo do seu nível educacional. Há mesmo pessoas com doutorado fazendo coisas como vender brigadeiro para sobreviver porque não conseguem emprego nem como auxiliar de serviços gerais.

Houve pessoas com quem conversei falando sobre o que mãe me disse a respeito de Deus ter um emprego especial guardado para mim e essas pessoas – que, aliás, acreditam em Deus – falaram que tal argumento é absurdo, porque Deus também não fará o emprego certo cair do céu. Outro fator que me fez ter dúvidas foi as pessoas dizerem com tanta certeza que Deus tinha algo melhor para mim. Como uma pessoa pode saber tanto o que Deus tem reservado para outra? Pensemos nisso porque, na própria Bíblia, Deus só fala diretamente com os Seus escolhidos. Mas hoje parece que Ele distribuiu o dom da revelação a torto e a direito porque o que não falta é gente que fala saber a vontade de Deus para outras pessoas como se Deus houvesse mandado mensagem por celular.

Façamo-nos um questionamento: dizem que não podemos ir contra a vontade de Deus e que não adianta orar e pedir algo a Deus se não for da vontade Dele nos conceder o que pedimos. Pelo que podemos ver, não dá para a vontade Divina coexistir com o chamado livre arbítrio porque ambas as duas ideias são contraditórias. Ou Deus tem uma vontade sobre as nossas vidas ou nós temos o livre arbítrio e Deus, simplesmente, não interfere em nada. Penso muito nisso quando lembro de quando eu dizia que queria ir embora de casa assim que tivesse minha independência e minha mãe falava que podia não ser o que Deus queria para mim e outros diziam que Deus podia ter planos diferentes. Pelo visto, essas pessoas jamais se perguntaram por que Deus vai interferir em algo tão pessoal como o desejo da pessoa ir embora de um lugar e não interfere quando um maluco entra atirando numa escola ou outro lugar público ou quando o dirigente de um Estado declara guerra a outro.

Eu não consigo esquecer quando uma conhecida católica falou que eu devia entender que tudo acontecia com um propósito. Será que existe o propósito divino mesmo? Com que propósito uma criança é abusada? Eu cheguei a perguntar isso a ela, que falou que se uma criança era abusada isso não era culpa de Deus mas se devia ao fato de haver gente ruim no mundo. Quer dizer então que só se pode falar em propósito quando algo bom acontece? Como disse o americano Sam Harris, quando uma pessoa se salva, ela diz que Deus é bom, mas quando ocorrem tragédias que matam várias pessoas, como nos casos desses tsunamis ou outros desastres naturais, usa-se a desculpa de que Deus é misterioso e que não somos capazes de entender os Seus mistérios.

Falaram-me muito que tudo que estou passando é para um propósito maior, que um dia eu entenderei os planos de Deus para minha vida. Porém, retomando o caso de crianças que são abusadas e até mortas(muitas vezes por seus próprios genitores), qual o propósito maior de coisas assim acontecerem? Com que propósito Isabella Nardoni e Lucas Terra foram mortos de forma tão bárbara? No caso de Lucas Terra, que virou um símbolo da luta contra a impunidade, vale ressaltar que ele foi morto por pastores da Igreja Universal e era um rapaz exemplar, que vivia na igreja e sonhava ser pastor. Se tudo ocorre com um propósito, isso então significa que Isabella Nardoni, Lucas Terra e outros jovens tinham que morrer como morreram? Pensemos também no caso de Jacqueline Saburido, jovem que foi vítima de um motorista embriagado, teve quase todo o corpo queimado e ficou deformada. Isso precisou acontecer? E para que isso precisou acontecer?

Pode-se dizer que Deus não existe? Não, não dá para se provar Sua inexistência, porém o que podemos concluir é que não dá para acreditar nas explicações que os religiosos costumam dar para explicar as tragédias e tudo mais que nossa razão não consegue explicar. Se eu não sei nada dos mistérios da vida, com certeza essas pessoas que tentaram me esclarecer dizendo que tal coisa se devia a uma suposta Vontade Divina também não sabem e cada vez mais eu concordo com o que disse uma mulher chamada Susan B. Anthony, que afirmou desconfiar das pessoas que diziam saber a Vontade de Deus porque, na maioria das vezes, isso coincidia com os desejos delas.