O DESAMPARO DA MORAL – Friedrich Nietzsche

A filosofia de Friedrich Nietzsche (1844 – 1900) não é fácil de ser classificada. Tem algo de existencialista e muito de antiessencialista em sua filosofia. Foi também um crítico da metafísica e, sobretudo, um destruidor de ídolos da moralidade que permeava a própria tradição filosófica. Nietzsche foi um exímio iconoclasta das “verdades” das filosofias. Era um pensador polissêmico, um filósofo de muitas ideias. No seu tempo, Nietzsche foi pouco lido e compreendido.

O futuro acolheu e compreendeu melhor a filosofia de Nietzsche do que os contemporâneos de sua época. Escreveu para o futuro, por isso, ele é tão atual. Suas ideias irão influenciar a literatura, a história, a sociologia, o teatro, o cinema e as artes plásticas. Até mesmo a própria filosofia se tornou mais fértil com a filosofia de Nietzsche.

Seu pensamento não se encaixa na moldura da galeria da história da filosofia; suas ideias continuam martelando e destruindo qualquer possibilidade de absolutismo metafísico, principalmente, em relação à verdade. Ele ri da verdade e do rebanho que ruminam essa ficção. Nietzsche é futuro do futuro, um filósofo do amanhã, o mestre do eterno retorno.

A lista dos livros de Friedrich Nietzsche é extensa. Por onde começar? Para um leitor iniciante eu sugeriria a leitura dos seus livros da seguinte maneira: “Crepúsculos dos Ídolos” (1888), “Além do Bem e do Mal” (1886), “Humano, Demasiado Humano” (1886), “A Gaia Ciência” (1882), “Genealogia da Moral” (1887), “O Anticristo” (1888) e “Assim Falou Zaratustra (1883-1885). Nas leituras destes livros, o leitor ou leitora poderão atentar à crítica que o filósofo faz em relação as verdades metafísicas presente na tradição filosófica, teológica e científica da cultura ocidental.

Este conjunto de livros, nos permite entender a crítica que Nietzsche faz ao tema da verdade metafísica. A crítica do filósofo se desenrola a partir de “como se filosofa com martelo” em relação à tradição metafísica (o mundo duplo de Platão e o Deus do Cristianismo) que irá permear todo o pensamento da cultura ocidental. De acordo com Nietzsche, a verdade metafísica nasce na Grécia Antiga, mas continua presente na cultura religiosa do cristianismo e irá influenciar a filosofia racionalista moderna.

Em seu livro, Crepúsculos dos Ídolos, Nietzsche afirma: “o ‘mundo verdadeiro’ – uma ideia que não é mais útil para nada, que nem mesmo obriga, - uma Ideia que se tornou inútil, supérflua, por conseguinte uma Ideia refutada: eliminemo-la!”. A ideia de um “mundo verdadeiro” se torna o alvo predileto da filosofia do martelo de Nietzsche. A filosofia platônica, o Deus do cristianismo, a filosofia e a ciência moderna são continuidades deste “mundo verdadeiro” que o martelo filosófico de Nietzsche deseja combater.

A “filosofia a golpe de martelo” se propõe fazer uma crítica aos ditos valores “superiores” das filosofias, ou aquilo que Nietzsche chamava de crítica “as verdades dos ídolos de barro”. Ou seja, a imagem do martelo é a forma agressiva de como Nietzsche desejava enfrentar os valores morais dominantes das filosofias metafísicas. Mais do que duvidar dos valores; era preciso suspeitar do “valor” dos valores de qualquer filosofia. No livro, Assim Falou Zaratustra, diz Nietzsche: “filosofar com o martelo, segundo nos parece, é assumir essa dupla função: destruição e criação”.

O martelo filosófico de Nietzsche em relação a VERDADE não é querer provar o seu contrário, ou seja, que ela é FALSA. A pergunta que o filósofo faz é outra: “POR QUE SEMPRE A VERDADE?”. Tal pergunta implica o deslocamento da verdade para uma problemática radical que é: a verdade é uma ideia e, portanto, ela tem história. Sendo assim, a verdade é criação humana e que, portanto, não passa de um valor moral que é produto da linguagem: um signo em constante disputa. A VERDADE é um signo que está em constante batalha; todos querem ter o domínio sobre ela. A vontade de verdade é uma vontade de poder. A verdade é uma moral que todos querem ser proprietários dela. Um signo de muitos donos, autores e autoridades.

A verdade, insiste o filósofo, é uma ficção. Daí a necessidade de se fazer uma genealogia da moral sobre a verdade. Nietzsche teve a coragem de promover um desamparo à verdade; tirou da verdade o véu da metafísica mítico-religiosa ou racional que a cobria. Desnudou a verdade quando afirmou seu aspecto humano de criação e, portanto, produto da linguagem; um signo em constante disputa pelos seus agentes criadores.

Em seu livro, Genealogia da Moral, Nietzsche diz: “não existem coisas que mais compensem serem levadas a sério do que os problemas da moral”. E a verdade é, para o filósofo, um valor moral que deve ser submetido ao questionamento como quaisquer outros sistemas morais existentes pelos homens. A problemática que a filosofia de Nietzsche traz para pensar a verdade não é aquela concepção ingênua se a verdade é de fato verdadeira ou falsa. O filósofo do martelo direciona sua crítica à verdade para um deslocamento histórico. A verdade é uma ideia que tem história; e esta ideia de verdade se ancora em valores morais metafísicos, sejam eles, mítico-religiosos ou racionais.

Nietzsche retira a verdade do pedestal sagrado que outras correntes filosóficas do passado haviam dado à ela, como por exemplo, a filosofia de Platão, bem como o Deus do cristianismo. O filósofo vê na verdade um valor moral que está constantemente em disputa, ou seja, a verdade é uma sistema moral em que diversas forças lutam pelo seu domínio. A vida é vontade de potência, diz Nietzsche.

Em em seu livro, Assim Falou Zaratustra, ele afirma que “onde encontrei vida, encontrei vontade de potência”. Dizer que a vida é vontade de potência é dizer que tudo que envolve a vida é uma guerra, uma relação de forças em constantes disputas; portanto, a verdade faz parte desse processo de disputas em que diversas forças querem se apoderar dela.

Ao pensar a verdade a partir da “Terra” e não mais dos “Céus” das metafísicas filosóficas, Nietzsche aponta para o elemento histórico e linguístico que envolve o tema da verdade. O filósofo-historiador e filólogo Nietzsche promove um tratamento em relação a verdade como uma ideia moral que tem uma história humana e não divina.

A verdade é signo da linguagem, portanto, é ficção. Ao dizer que a verdade é ficção, o filósofo não está afirmando que a verdade é mentira, mas sim invenção ou criação. A verdade é signo criado e, como qualquer obra de arte, deve ser interpretada. Não há nada de absoluto, eterno ou divino na verdade; como qualquer signo criado ela deve ser compreendida a partir de uma perspectiva.

Nietzsche promove o desamparo à verdade na medida em que a entende como um signo da linguagem que foi criado e que, portanto, deve ser interpretado em perspectivas como qualquer outros signos criado pelo ser humano. Não tem nada de absoluto, essencial ou eterno na verdade. Como qualquer sistema moral, o filósofo percebe na verdade um valor criado que se tornou moralmente útil à sociedade; ou seja, o objetivo da verdade é domesticar os indivíduos para transformá-los em rebanho: animais dóceis.

O indivíduo do rebanho dócil é aquele que tem vontade de verdade universal e absoluta; ele deseja o igual e o universal; tem horror ao particular e a singularidade. É nesta moral do rebanho que se encontram todos os idealismos metafísicos negadores da vida. A moral do rebanho comete o maior de todos os crimes: a negação da vida. Negá-se a vida que se tem, por uma outra vida em paraísos celestiais e, até mesmo, em racionalidades terrenas de autoridade científica como o progresso e o futuro. Estes são, diz o filósofo, os “melhoradores” da humanidade.

Nietzsche diagnosticou que a verdade, enquanto um sistema moral, produzia indivíduos de rebanhos dóceis. Quantos crimes essa moral do rebanho já cometeram? Nada mais criminoso do que a moral: a verdade do rebanho. Nietzsche feriu o orgulho do rebanho quando desnudou seus ídolos da verdade; ressentidos o rebanho acusa o filósofo de louco. No entanto, quando Nietzsche criticou os ídolos da verdade fez no momento lúcido da sua vida. Acusaram de louco àquele que compreendeu as insanidades das ilusões da verdade. Nunca a loucura, enquanto um signo moral, foi tão útil para negar a lucidez de um filósofo.

A moral, qualquer que seja, sempre foi a arma mais perigosa do rebanho. Com seus ídolos da verdade, o rebanho sempre dispõe do moralismo como arma para desautorizar e combater seus inimigos. Mesmo desamparado pela saúde do corpo, durante uma grande parte de sua vida, Nietzsche enfrentou com coragem o maior ídolo de todos os sistemas morais: a verdade. Seu pensamento desamparou esta moral de forma indelével na filosofia.

Wander Caires
Enviado por Wander Caires em 22/10/2023
Reeditado em 26/10/2023
Código do texto: T7914487
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