A invenção do assombro

Daqui a centenas de anos (talvez nem tanto tempo assim), existirá algum apetrecho que possibilite pôr as coisas (virtualmente) no papel meramente com a força do pensamento, no âmbito de um intangível processo de reflexão. Um dia, o ato de digitar fora chamado de datilografia e não se sabe como será denominada a, ainda inefável, técnica a ser utilizada para extirpar as enevoadas palavras da mente.

No fundo pouco importa a ferramenta, seja antiga ou moderna, recorrida para extrair semanticamente os vocábulos. A essência mantém-se imaculada: tudo esteve sempre dentro da cabeça. O meio disposto para oportunizar o interpor textual se altera conforme a inovação tecnológica, mas o ponto inaugural permanece intacto. Isso posto, sem dúvidas, os gênios do futuro ficarão intrigados ao se debruçar sobre toda subjacente mostra de inventabilidade por trás da engenharia disposta pelo mundo mecanográfico.

Eles dedicarão preciosas horas a escrutinar os complexos, enferrujados ou ressequidos arcabouços dos miraculosos equipamentos mecânicos apinhados de teclas. Em deleite pela descoberta datada do século XX, a imaginação poderá levar os pósteros sapientes a permear os muros do tempo, evocando assim momentos distantes no impreciso limiar entre realidade e imaginação. Em ambientes com nada mais que uma réstia de luz, por ora testemunham os egrégios artífices das letras penejarem um manuscrito inédito, com seus irrequietos dedos investindo contra as teclas, no crepitar ininterrupto da máquina de escrever.

No processo datilográfico, no qual foi erigida uma ponte para um sublime cabedal literário, exigia-se uma dose de paciência maior do que se podia esperar. Seria possível traçar o número de folhas desperdiçadas (formando uma infinidade de bolas de papel) durante a confecção de um romance? O autor esboça o texto datilografando algumas palavras. Pensa, repensa e logo a remove, sem pestanejar, devidamente despejada na lixeira depois de amassada. Sem tempo a perder, apanha outro papel idêntico, tão branco como uma casca de ovo e, em meio a tanta alvura maculada por tinta preta, quando menos se espera seu destino também passa a ser o lixo.

Quando o processo concomitante entre erro e acerto acaba tendendo mais para o primeiro, o escriba acaba invadido pelo súbito (e incessante) desejo de arremessar o próprio apetrecho de teclas para o mais longe possível, quem sabe se livrando dele pela janela mais próxima. É preciso dedicação para conquistar confiança, desenvolver intimidade com a imponente máquina de escrever. Logo, juntar palavras se tornará uma atividade mais natural, menos passiva de erro. Como o empreiteiro, que a cada tijolo, consegue formar a morada, a peregrinação do escritor é a sua mensagem.

Às vezes, os escritores podem se tornar reféns de seu próprio objeto de trabalho. Como aconteceu na ficção com Paul Sheldon, um renomado escritor ideado por Stephen King, que conquistara fama e prestígio com uma saga de best-sellers protagonizados por Misery Chastain. Quando Paul se envolve em um grave acidente de carro, ele é resgatado por Annie Wilkes, uma enfermeira aposentada e também sua fã número um, como costumava se autonomear. Abalada com os eventos finais do último livro da série, passa a manter o debilitado autor sob sua tutela. A única chance de sobreviver é reescrever a narrativa com uma antiquada máquina de escrever Royal, a ferramenta para fazer valer sua criatividade e construir um desfecho oportuno para a fatídica trama.

Em relação à máquina de escrever, é preciso deixar claro: não se trata de forma alguma em tergiversar a modernidade e viver, o tempo inteiro, de braços dados com o anacronismo. Nada disso! Apesar da aparente dramaticidade, como ocorre em outras profissões, o médico é representado pelo estetoscópio, o artista plástico tem sua arte estampada no perfeito casamento entre o pincel e paleta de cores, assim como o mestre-cuca (chef) carrega seu extravagante chapéu branco, no mesmo tom da imponente indumentária paramentada por intumescidos botões pretos, o escritor é comumente representado pela máquina de escrever, pipocando palavras diante dos sucessivos "TEC-TEC-TEC", com o personagem central (não literalmente) sangrando sobre ela defronte a uma escrivaninha vetusta e encimado por livros.

É evidente que a perspectiva descrita esteja atrelada a uma visão romantizada, ainda a povoar o imaginário popular, vislumbrando os homens das letras esmiuçando sua mensagem através de uma caneta de pena dançando sobre o papiro. Inventabilidade lírica à parte, essas cenas costumam ser mais reavivadas do que o hodierno computador com suas extasiantes teclas silentes.

Se em um passado nem tão remoto assim, os artesões das palavras possuíam como similitude a presença sublime da máquina de escrever, a gradativa ausência decorrente da tecnologia não despi o autor, menos ainda reclama pela ruptura com o encanto em despontar narrativas. Além do comum aspecto de que cada escritor, ao longo da experiência escrita, articula formas e métodos para entrelaçar o universo das letras, também se faz necessário um questionamento: de onde sobrevém o verdadeiro escritor? Talvez até habite um plano desconhecido, mas sua qualidade medular de marcar a existência não lhe permite tornar-se refém das canetas de pena, computadores, tablets, ou mesmo da lendária máquina de escrever.

Rafinha Heleno
Enviado por Rafinha Heleno em 18/03/2024
Código do texto: T8022658
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