Nós

I

Nós somos homens do mar. No azul profundo nos lançamos em busca de aventuras. Mas como náufragos chegamos ao novo continente. Somos recebidos como mendigos e não como heróis. Pior. Ao ouvirem nossas histórias sobre outras terras, passam a nos considerar indesejáveis. Riem de nós. E seu riso machuca nossos ouvidos, pois somos uma piada para eles. Sabem pouco a nosso respeito. Ignoram que nossas cores significam perigo e que o veneno de nossas presas é mortal. Entre nós há muitos marimbondos e escorpiões, aranhas e serpentes. Acima de tudo, somos caçadores. Sabemos atocaiar, acuar. Sabemos principalmente, onde ferir para uma morte rápida. Nossas aljavas estão cheias de flechas e nosso arco está pronto para vibrar novamente. Não obstante, nossas habilidades são inúteis numa terra de pastores e rebanhos. Alguns já nascem prontos para o abate. Nada podemos fazer.

II

Nosso espírito é o dos homens da guerra. Temos Vontade de Ferro. Nosso caminhar é altivo e orgulhoso, e nossas espadas desfilam polidas e afiadas na bainha. Sabemos que o bom inimigo é tão necessário quanto o bom amigo. Mas eles oferecem a outra face e depois apunhalam pelas costas.

Nosso gostar e nosso desejo são sinceros. Vamos até às últimas conseqüências. Nossa paixão e nosso amor explodem em cores magníficas na alvorada e no poente. Mas é no escuro e no frio que eles se masturbam e se flagelam apenas para evitar a carne de uma mulher. Então chamam a si mesmos de castos, enquanto nós somos os impuros. Nosso amor vos acompanha como o sol das nove horas, aquece e anima. Mas nosso ódio não vos surpreenderá como chuva de verão.

Contra a humildade afetada que eles exibem, nosso orgulho os envergonha, os mortifica. Temos chifre e mau-cheiro para eles.

III

Não nos querem aqui. Mas também não nos deixam partir. Querem desfigurar nosso orgulho. Querem moldar nossa força e nossa coragem. Aqui há ervas daninhas que sufocam as grandes árvores. Chamam a estas parasitas de paz e mansidão. Mas as grandes árvores que elas sufocam dariam frutos saborosos, e matariam a fome de muitos. Mas ainda assim, consideram crime contra a virtude extirpar estas ervas perversas.

IV

Entrementes, fugimos para as altas montanhas. Como grandes aves, buscamos as montanhas inacessíveis. Contra nossos instintos, fugimos. Nossas espadas recusam o sangue de ovelhas e pastores. Nossas espadas querem os dragões, feras, bestas inomináveis e o bom inimigo.

V

Não iremos mais fugir. Estamos decididos. Aqui não é nosso lar. Jamais será nosso país. Mas vamos ficar e lutar se necessário. Desceremos as montanhas como avalanche. Eles pensam que irão nos vencer. Eles não têm a Vontade de Ferro. Esperam por traidores em nosso grupo. Só assim nos vencerão. Veremos. Alguns deles nos ouvirão e se juntarão a nós também. Começaremos a revolução. Outros a terminarão. Não é nossa missão guiar ninguém. Daremos o exemplo. Seremos estrelas cadentes no céu e peixes velozes no mar. Só os homens certos na hora certa poderão nos captar. Serão uma minoria, sabemos disso. O resto será a maioria. O que nos importa o resto? E o que nos importa a maioria?