A última (?) contra-dança

Terça-feira, 5 de Junho de 2007

Existe alguma coisa de fascinante na música que me envolve. Parece bolero. Tem quase o mesmo efeito dos sorrisos venenosos. Me transporta para dentro de mim, para um lugar ao qual pertenço. Mas é quase indissociável! Perfídia. Parece bolero. Na fotografia pareço tão linda. Dizer que não quero teus beijos nunca mais.

Ela, a mulher. As luvas, longas enlaçam o pescoço dele. O olhar semi-cerrado. O nariz passeia pelo pescoço. Um suspiro mais longo. As palmas abertas envolvem a cintura. Os olhares semi-cerrados, ambos, os lábios, um semi-sorriso. Gesto pequeno, de precisão incalculável. Atinge algum ponto profundo que nem se encontra no corpo.Resgata a identidade. Poderia ser ao mesmo tempo num passado remoto ou num futuro nem tão distante. Quase no presente, em relances. Parece flashback. Ele experimenta a delícia de ser por um instante e não percebe o prazer que ela proporciona. Se se deixasse levar, como em ondas constantes, encontraria o que procurará por toda uma vida. Ela não estava segura o bastante para conduzir a dança, embora dançasse visivelmente melhor do que ele. A culpa, de ambos. Ela não pode assumir. Ele precisa acreditar que está guiando, embora ainda esteja aprendendo a dançar. Para ela, resta a arte de fazer parecer que se deixa comandar enquanto ele aprende a fazê-lo. Agora a dança chega ao fim..."Ah..."- ela vai embora pensando- "Quem sabe na próxima festa ele já não tenha treinado suficientemente pela noite afora e não saiba me conduzir com convicção...?" Assim, a mulher chegou em casa, tirou as luvas e as guardou numa caixa. "Existem tantos outros que dançam tão melhor..." Olhou no espelho, estranho aperto no peito, semi-sorriso disfarçando a dor, maquiagem escorrendo. "Mas é que talvez houvesse uma certa graça em se saber melhor dançarina do que ele..." Como um segredo que só ela conhecia. Para este aprendiz os próprios desejos mais profundos são obscurecidos pelo peso de um presente paupável e realista. Não sabia ele que o segredo de ser um grande dançarino estava em acreditar que o era. Preferiu aprender praticando mais algumas noites. A mulher adormeceu sozinha e com uma estranha convicção de que só acertariam o passo definitivamente quando ele estivesse certo de estar guiando, certo de ser um grande dançarino. " Talvez não haja outra festa"...E sorriu, porque estranhamente não duvidava que haveria... E que quando este dia chegasse, estaria tão mais bela e dançando tão melhor!...

A música ainda toca. Agora é a foto em preto q branco que tirei. Estranhemente ainda causa aquela primeira reação. Já não parece tão estranho não existirem mais palavras. À tudo se acostuma. É tarde para voltar e já nem assim desejo. Por hora. Por hora é o silêncio da ausência.

Elle Henriques
Enviado por Elle Henriques em 13/02/2008
Código do texto: T857391