Você come carne?

Você come carne? Muitos, na verdade a grande maioria, responderá “sim” com a mesma simplicidade com que aponta seus gostos pessoais acerca de uma cor ou de uma música. “Comer carne” é, por si só, uma expressão feia, daquelas que sequer soam bem. Até mesmo a fonética parece indicar termos aí algo ilícito, ou, ao menos, pouco recomendável. Com o português, que é o único idioma que eu domino, fica-me essa impressão. No inglês, “comer carne” soa-me como algo imoral, francamente pervertido. Enfim, comemos carne, a maioria de nós.

Creio que comemos carne porque não realizamos todos os atos terríveis que antecedem o repasto servido em nossos pratos. Já fez um churrasco? Já “limpou uma picanha”? Cortar fora a gordura ou os nervos indesejados não é exatamente algo edificante de se fazer. De qualquer forma, não é a esse ritual pré-culinário a que me refiro como os antecedentes terríveis da sanha com que devoramos as vísceras de outro ser.

Não. Refiro-me à conduta covarde de manter criadouros de seres para destiná-los ao abate, via de regra sob requintes como muito sangue jorrando pelo chão, restos de carcaças acolá, ossos por ali, tendo ao fundo vários homens com suas roupas horrivelmente sujas envergando lâminas enormes à destra. Nossa! Que pueril, dirão muitos. Claro que há os matadouros menos chocantes. Ambientes revestidos, homens uniformizados, tudo muito limpo sob água jorrando – não mais sangue – para rapidamente ocultar a vida se esvaindo pelo ralo, literalmente.

Não importa. O que assusta é pensar que, nessa ordem, criamos, matamos e devoramos outros animais. O prazer sentido com um churrasco bem preparado, como se diz, “ao ponto”, com um pouquinho ainda de sangue na carne, é a certeza de que chegamos ao ponto de tão-somente sofisticar o prazer pela carne que devoramos. Sofisticar? Enfim.

A nossa sorte é a de que podemos pagar para que outros façam esse trabalho canalha para nós. É muito bom podermos dormir sem pensar na dor e sofrimento que infligimos em seres com capacidade de chorar. É isso mesmo. Duvida? Ora, passe uns tempos no meio rural, junto de bois e vacas. Garanto que é um ótimo aprendizado. Eu mesmo vi vacas acarinhando seus criadores, roçando levemente suas enormes cabeças entre pequenos roncos de puro carinho. Vi mais. Vi as vacas atenderem ao chamado, pelo nome, certinho como se fossem crianças respondendo à chamada na escola. Vi os enormes olhos, escuros, romperem em lágrimas depois de divisarem uma pessoa querida que estivera ausente por algum tempo. Aquela pobre vaca teve ao menos a sorte de ser morta já depois de velha, já que era uma vaca leiteira. Só foi assassinada depois que já não mais servia à rapina de sua capacidade de alimentar.

Vacas choram. Têm um choro sentido, silencioso, digno. Diferente dos porcos que gritam alucinadamente quando o “criador” lhe insere uma faca no músculo cardíaco com a habilidade de um espadachim. Claro que o porco apenas atende a um instinto... Claro... O seu grito não é de dor nem sofrimento, não é verdade? Afinal, é apenas um porco. A vaca, afinal de contas, nem mesmo chora. Eu é que estou apenas inventando coisas chatas para tentar estragar o próximo churrasquinho de fim de semana. Justo agora que você estava pensando em juntar à picanha um lombinho, não é mesmo?

Muitos bradam com a Bíblia à mão que Deus criou os animais para que nós, dentre outras coisas, pudéssemos comê-los. Respeito a religião de todos. Por isso mesmo prefiro continuar sem nenhuma.

Não pense que eu estou sugerindo que todos nós nos tornemos vegetarianos. Apenas aqueles de nós que conseguirem.

Os demais, bem, continuemos devorando nossos irmãos menores...

Marco Aurélio Leite da Silva
Enviado por Marco Aurélio Leite da Silva em 10/03/2008
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