Amigo

Deixando a tasca, já de madrugada,

depois de ter tomado a saideira,

encontrei pela rua, na calçada,

um magro cão que virava uma lixeira.

Por estar sob efeito da bebida,

Querendo conversar com quem quer que fosse,

bati-lhe os dedos numa convida

e com a cauda entre as pernas, olhou-me: doce.

E humildemente parecia se desculpar

Por estar à minha frente.

Eu, meio tonto, ainda na sandice dos ébrios,

via naquele olhar silente,

Uma ternura que só havia achado

no olhar daquela que bordou-me um dia,

um belo chapéu grego, com tanto cuidado

e em seguida deixando-me partia.

Deixando-me totalmente sujeito

a saudade, pois ela, no bordar,

bordou seu nome dentro do meu peito,

como se para me marcar.

Pois bem, atrevo-me a contar agora

e o faço sempre tendo em mira

a história desse cão, já sabendo, embora,

o triste desfecho desta lira:

Levei o cão para casa e com ele dividia

toda a minha grande e atroz tristeza,

também o pouco da minha alegria,

como o pão da minha mesa.

Com o bom trato, o animal fez-se luzidio

E quão bela cor, era a sua!

Nem parecia aquele cão vadio

Que em certa noite encontrei na rua.

E quando triste me embrenhava pelo mato,

fugindo de tormentos que não tinham fim,

era ele o cão, que sempre grato,

amigo e fiel, estava ao pé de mim.

Mas o tempo passou e com o seu passar

um desencanto foi sombreando aquele afeto.

Eu já não podia mais, aquele cão tolerar,

pulando sobre mim, vivendo sob o meu teto.

Pintou-me a ideia de livrar-me dele

E numa noite tenebrosa, extremamente fria,

achado aos meus pés, simplesmente, ele

encolhido, muito afável, de frio tremia.

Resolvi desfazer daquele nefasto companheiro

que em momentos cruéis até me consolara,

porém, agora o dia inteiro,

era como se risse da minha cara.

Numa noite em que todos os ventos do mundo

Pareciam se zunir no meu telhado.

Relâmpagos e trovões a cada segundo

E lá fora o mundo, todo molhado

E foi assim que de casa o enxotei.

Premeditara tudo para fazer assim.

Para fora, o cão eu arrastei

Ignorando o olhar de súplica sobre mim

Até surrei-lhe e após surrá-lo

Dei-lhe chutes mandando que passasse...

Jogando-o na rua eu disse num estalo

que a fome, dele se encarregasse

E apenas seu vulto eu vi sumir.

Lá fora sob o vento, no maior alarde.

Atravanquei a porta e fui dormir

Dizendo ao velho cão: “Já vai tarde!”

Em minha casa já não latiria

Eu já não ouviria seu latir nojento.

E os uivos horrorosos que ainda ouvia,

atribuía ser barulho do vento.

Amanheceu, um dia maravilhoso de sol,

quando tomei café da manhã e então,

e pela janela, alegrei-me com a luz do arrebol,

negava-me a pensar no cão.

Desejei que o seu manjar fosse agora,

Um velho osso fedido e duro

Encontrado no lixo, lá fora

virando latas de algum monturo.

Mas ao sair de casa, na ilusão

que sempre nos conforta

de ter chegado a paz, topei o cão,

pois ele, fiel, guardava a minha porta.

Veio-me em festas, o rabo abanando,

ganindo de alegria, com muita denguice...

lambeu-me as mãos, ficou me contemplando

como se há muito tempo não me visse.

Depois entrou. E, farejando tudo,

foi deitar-se, no seu confortável canto

com a cara mais lerda, quieto, mudo,

pegou no sono e até, sonhou tanto.

Eu amolado, magoado resolvi a matá-lo

urdia uma maneira de um jeito mais ameno.

Pensei até em envenená-lo,

Mas, “Isso não vale uma dose de veneno.”

A enorme enchente no rio tomava as, margens

Muita água fremente inundava as vargens.

Eu puxei o cão para a canoa sobre as águas,

Ele me olhava enquanto eu remava

nos seus olhos era visível a mágoa

que silenciosamente me condenava.

Então incomodado, para me disfarçar

Cantarolei uma modinha antiga

A brisa me ajudou, pois a soprar,

amenizou a minha fadiga.

Amarrei uma pedra no pescoço do cão

e vi que ele tremia, tremia, tremia...

Atirei-o na enchente. Hoje não,

quero lembrar aquele dia.

Ele não soltou um gemido. Eu ouvi, o calado

quando ele bateu n'água. Inclinei-me feliz.

Nisso, caiu na enchente o meu chapéu bordado.

Tão amado, que eu tanto quiz

por ser lembrança de um amor do passado.

Voltei. Fazia mais de hora, eu não dormia,

quando ouvi bater à minha porta insistentemente.

Abri. Era o cão, que me trazia,

O meu chapéu, entre os seus dentes.

como corpo ensanguentado, cambaleava

e vendo que era mesmo eu,

me lambia enquanto eu o abraçava

olhou-me ainda e morreu!!!