Poética - O canto da sereia

"Éramos opostos por natureza;

mas a potência dionisíaca e a paixão pelo conhecimento de alguma forma nos unia.

Enquanto todas as outras criaturas me fadigavam pelo tédio e as aparências; tu eras uma divindade criando o teu próprio universo de forças irrefreáveis.

Quando nos encontrávamos,

as chamas do inferno reacendiam só para que os átomos do meu corpo se integrassem ao teu.

Mas sempre que eu entrava em mim, tu abrias o peito para o mundo, e já virados de costas, nós nos feríamos com os abismos que criávamos."

Pudera eu então ter sido capaz de silenciar o que senti a primeira vez que cravei meus olhos em ti?

Pudera eu pedir perdão por todas as vezes que sangrei em teus lábios e manchei tua alma com o sabor metálico da minha natureza?

Em meus piores momentos, as tuas lágrimas fundiam-se às minhas, estabelecendo uma mórbida conexão entre os nossos olhos (...)

Ah, os olhos, ao equiparar os meus ao oceano, tu já se afogava nas profundezas do perigo.

Sereias assassinas entoavam cânticos melancólicos e tragavam-te para dentro de mim.

Fui uma infecção ao consumir teus tecidos e inflamar teu coração até que sentisses as minhas partes pútridas crescerem em ti como um tumor.

Nas labaredas de uma sensibilidade cruel, o mundo rasgava as minhas vísceras e não havia nada que tu pudesses fazer, exceto sentar e me assistir fenecer (...)

Existia algo trágico e puro

na minha natureza, algo que incandescia a existência em meio ao caos e atraia criaturas como você.

Mas enquanto tu drenava-me para dentro de ti sem ao menos despir o que sentias, eu fenecia em total exposição - foi assim que parimos uma ausência infecciosa no leito do teu orgulho.

As sereias já cantavam a minha insuficiência; as sereias seduziam as minhas inseguranças.

As armadilhas da minha mente

possuem escamas ásperas;

elas deslizam em meus instintos e me manipulam para o fundo de mim.

Vou quedando na cegueira das minhas ilusões até perder o teu amor de vista.

Imensas são as algas que fazem fotossíntese com a escuridão. Imensas são as formas que se afogam em minhas lágrimas

Por mais que tu me chames ou tentes me convencer de que não sou um fardo, a tua voz é abafada dentro das conchas do tempo, pois nada mais me alcança em meio aos lodos da autodestruição.

Já não esperes por mim;

Não irei emergir em teus sonhos.

Ao encarar o abismo da ausência, ele encarou-te de volta e suavemente devolveu-me à solidão.

- Letícia Sales

Instagram literário: @hecate533

Letícia Sales
Enviado por Letícia Sales em 16/02/2022
Reeditado em 04/03/2022
Código do texto: T7453213
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