Condolências aos Restos...

(Condolências aos Restos Mortais de um

Ideal Absoluto Particularizado ou

Desabafo de um Morto-vivo Passional)

NEIL

"– Bem, era isso que você queria.

Em poucas horas será dia,

não sabemos o que fazer com os restos

e os restos não foram muito bem separados."

CHRIS

"– O fato de não podermos jamais trazer de volta

o absoluto que perdemos

não precisa ser necessariamente motivo de lamento.

Sinta o gostinho."

NEIL

"– Sabe, às vezes as suas palavras conseguem

erguer-me do chão e eu flutuo.

Gostaria que pudesse ser sempre assim.

O problema é que agora se trata do..."

Qualquer um diria que tudo continua igual,

porque não inventaram o raio-X da alma

e eu continuo visível

mas não compreensível,

se é que tu mesmo me compreendes...

Ora, vejam: estou falando com as paredes.

Elas ainda estão de pé,

porque não podem se apaixonar.

Vergo a haste do meu passado.

Meu opróbrio é suave

quando não sou Pensamento

e Desejo.

Mas se sou Coceira,

logo também sou Coração,

e sinto muito por não ter

retido tua vileza saborosa

intacta em minha desrazão.

Bustos de Lênin, imagens de Maria

– apenas crer não me alivia.

Bono Vox, Che Guevara, Luiz Inácio,

– procura-se desesperadamente pelo Messias.

Como posso eu contar a eles

que acabo de matá-lo?

Como posso contar ao mundo

que o fim está próximo?

Acabamos de matá-lo

com o requinte da língua,

na inocência de um beijo,

naquela delicada mordida sedenta de sangue.

Num trágico fim-de-noite,

estático e já emoldurado em minha mente,

pisamos na terra, entre espinhos e abrolhos,

decaídos, exilados, fugitivos, criminosos...

Meus olhos não conseguem acompanhar o videoclipe,

meu pesar é um arcaísmo obsoleto

e catatônico o ritmo do meu pranto...

Ninguém jamais lerá os versos

analógicos ou de última geração digital

de rancor dissimulado

sobre os pés da tua imagem derramados.

Minhas vidas se derramam

em gotas masculinas sobre o algodão,

entre farelos carbonizados de alcatrão.

Horas a fio.

(...?)

Há um vazio no céu:

nosso amor está morto.

Comecei a morrer desde que nasci para o teu amor...,

antes um aborto da tecnologia,

ZERO em Teologia da Libertação.

Fui escravo do teu vício,

capacho do teu capricho,

objeto de ordinário valor

a seguir-te em transe magnético

por ruas, esquinas, becos,

corredores, ante-salas, espeluncas,

antros, pocilgas,

templos...

Não posso evitar a lembrança,

não há o que se possa fazer...

Apenas saio, calo, caio.

As gotas que caem de meus olhos

são o substrato de uma alma perdida...

Não consigo mais conter-te em minhas pálpebras

trêmulas, cinzentas

como o céu que se derrama

fugitivo, exilado, decaído, criminoso,

entre abrolhos...

Já se passaram três dias,

três semanas, três marias,

três glaciações...

e não está sequer cicatrizado

o músculo pulsante que feriste com tua língua

áspera, mordaz e ferina.

Desde que adentrei tua ferida,

fétida porém viva,

de enxertos alienígenas desconcertante,

atrofiadamente imprevisível,

reducionista e ambivalente,

pensei eu no que criar

de desafiador, no que gerar

sem a mácula original

que olvidei em mim recém ter passado a estar,

a partir do espasmo do meu órgão...

A Liberdade me castra

a identidade mal púbero-emancipada;

a ambivalente assim chamada Liberdade

me corta as pernas, me dá corda

e então me arrasto:

em Liberdade, devorado

– Prometeu acorrentado...

MAS se já estou cumprindo a pena,

eterna, irremissível,

então por que ainda me arrependo?

Por que de ti dependo?

Seria algo na Eternidade que me escapa,

humilha e exalta?

Não consigo ir mais longe,

em tua falta redundo.

Se paro para pensar,

logo me açoitam, cospem e forçam a continuar

a girar a velha roda...

(Rolar a velha pedra...)

Se o meu mundo cai por terra,

eu enterro meu futuro,

exumo a velha chaga

que mantém o meu desejo

tão ilusoriamente morto como eu

(poderia estar)...

Se o meu mundo cai por terra,

amanhã cairão impérios,

cairá o resto

das ilusões de minha espécie em extinção.

Temo encontrar em meu pranto inútil

o prelúdio de minha redenção,

o repúdio da voluntária escravidão.

Extinção.

Fuga da fuga da fuga da fuga

da fuga de amar menos e melhor.

Por uma eternidade,

como, bebo e durmo eternamente.

Por uma eternidade,

como, bebo, escovo os dentes

e choro eternamente

a redenção

do fim do fim do fim do fim

da nova roda desafiadora,

alienígena, desconcertante e redentora.

Nosso amor morreu,

mas ainda estou vivo,

vagando entre dois mundos.

Continuo na carne

e sempre continuarei à tua sombra,

engolindo em seco teorias

continuamente ignoradas pelos amantes.

Estarei sempre a obsidiar-te,

vagabundo, errante,

entre dois reinos eqüidistantes.

Amanhã, tudo mais acaba

– e olhamos TV.

"...FIM."

Terça-feira, 13 de outubro de 1998.