Estava Lendo Um Livro

Estava lendo um livro,

Sentado numa poltrona,

Pernas cruzadas e braços encolhidos,

O barulho naquele silêncio de insônia.

Virava cada página,

Na expectativa da grafia seguinte,

Tomado de uma literária mágica,

Saía do meu corpo em personagens que me afligem.

Cantava em voz mental as sílabas,

Juntava cada predicado em busca de um sujeito,

Pra mim o tempo nem existia,

Me sentia um desbravador que desconhece o receio.

Por mais que a curiosidade instigasse,

Não saltava a história escrita,

Respeitava a cronologia por mais que odiasse,

No máximo um especular eu me atrevia.

Passarinhos cantando na árvore,

Inocentes Passeridae cantantes,

Dão fundo vibrante no sonoro ataque,

Enquanto leio com memórias cortantes.

Esse aroma de café coado,

Misturado com fornada de biscoitos,

Não levanto por enfado,

Aguardo me chamarem de novo.

Que prazer o de ler,

Sinto cãibra na perna esquerda,

Mudo de posição pra arrefecer,

Preciso melhorar a circulação enferma.

Ajeito os óculos que embaçam,

O suor já brota na testa oleoso,

A tv mostra notícias que me escapam,

Um som longe parecendo alarme tedioso.

Meu cachorro se aproxima com recato,

Que presunção dizer “meu” a essa criatura,

Abana o rabo, dá uns latidos pra um cão do outro lado,

Olho pra ele, já entende e muda a postura.

Tiro o chinelo do pé direito,

Mas ele não sai do esperado jeito,

Fica pendurado entre dedos,

Não consigo estar descalço por inteiro.

O crepúsculo anuncia a vergonha do sol,

Que se esconde no fim de um dia não tão radioso,

A lua já está espreitando feito um farol,

Quer usurpar o lugar de destaque no céu glorioso.

Esse Culicidae me picam,

Provam meu sangue,

Coço os locais que incham,

Alergia constante.

Agora a trama da obra está ótima,

Dou risadas pra mim mesmo,

Imagino o desfecho da história,

Espero que termine surpreso.

Ontem eu era pra ter feito algo que esqueci,

O fato de esquecer não exime a necessidade de ter feito,

A consciência espanca em busca de redimir,

Procuro vasculhar o banco de dados memoriais, mas não obtenho êxito.

Meu braço sem relógio,

Ainda assim aguça a necessidade de horário,

Em outro dia estaria num escritório,

Aqui apenas tenho uma folga de funcionário.

Prestações a vencer,

Que apoteose o meio desse livro,

Tenho ainda algum saldo a render,

Me contentaria em findar nesse trecho lido.

Como é mesmo o nome daquela moça?

O vestido modela o corpo bem feito,

Ah sim, se chama Leonora,

Espero que passe mais vezes para eu interromper o que leio.

As casas dessa rua são muito parecidas,

As pessoas fizeram diversas reformas,

No final foram todos tendo a mesma fisionomia,

As inovações são cada vez menos novas.

Ocorreu uma dobra no processo de encadernação,

A página desse volume está com a ponta dobrada,

Para reparar terei que cortar, causando dano sem reparação,

Deixo esse detalhe como se fosse um selo dessa edição limitada.

Li alguns romances parecidos,

São próximos mais algo os torna diferentes,

Talvez possa explicar algum catedrático entendido,

Só considero a ligação até o ponto de ruptura insurgente.

Cheiro de livro mofado,

Se não fosse minha asma,

Preciso tomar cuidado,

Mas esse velho tomo arrasa.

Essa obra foi escrita em três partes,

Mas só li o segundo volume,

Por não querer que ela acabe,

Excluí futuro e pretérito, só o presente interage.

Amanhã vou me sentar aqui novamente,

Mas não serei o mesmo de hoje,

Terei de fato uma nova mente,

Todo dia é como se o último dia fosse.