Tempo de passagens; brigas entre o eu e a memória.

Notei que o horário já avançado trocava afagos não tão afáveis com o tempo inverso do dia. Já era madrugada! O dia exausto e abatido abatia a apatia da noite moça. Desposada por quem não a conquistara, moça assumida, assumia o papel de não mais ser moça.

Observando as regras daquele jogo nada amistoso, percebi que seus princípios não me eram estranhos. Pincei significados de seu universo multiforme buscando desvelar suas charadas bifurcadas. Garimpando sentidos para aquela estranha visão, avistei um ponto, vetor de união entre as partes antes apartadas. Foi naquele exato instante em que percebi: havia chegado um tempo de passagens.

De olhos abertos, adormeci. Coloquei-me a passear pelos labirintos conflituosos de uma memória retraída, traída e amargurada. Relembrando agora o passado de outrora, busquei circunstâncias daqui, articulando-as a situações do ali e ali fiquei. Cravei os olhos numa ocasião intrigante; não queria acreditar, e esbravejei fortemente:

"Você por aqui novamente!?"

Resisti num primeiro momento! Corri o mais rápido que pude! Pulei obstáculos, contornei esquinas, utilizei energias, nem sabia eram minhas. Elevando a limitação a seu extremo, esvaziei-me. Depositei por sobre as paredes do meu eu passado toda aquela sufocante sensação. Veio-me então um prolongado grito, seguido de uma ligeira reflexão:

"Maldita seja você, insensível memória! Você não pode me ver feliz que logo se põe a reavivar desilusões, reativar as tentativas frustradas. Guarda somente o não edificante! Encerra o significado de tua existência na baixa presteza de ceifar meus sonhos."

A reflexão prosseguiu instantaneamente:

"Quero que entenda uma coisa. Necessito ousar novamente! Preciso ver minha humanidade solta, livre, alçando vôos incertos, vislumbrando paisagens longínquas, bucólicas, distantes."

O pensamento alforriado prosseguiu seu trajeto rumo a tão sonhada liberdade:

"Já nem me lembro quantas foram as vezes em que tua lógica cartesiana infertilizou as terras que por mim já haviam sido adubadas. Fez pairar por sobre solos de emoções espontâneas o ceticismo seco e rachado, típico do terreno morto, nascido já enterrado".

As palavras abrandavam o tom revoltoso ao passo que a luz da liberdade descortinava a escuridão do antigo cárcere:

"Não a tenho como inimiga; compreendo tua cautela! Afinal, a encarregada de levar a pesada tarefa de legar para situações futuras, frustrações passadas, é você memória amada. Você sabe que por todos esses anos fui teu cúmplice, teu companheiro, teu amante. Há muito sigo teus conselhos, percorro as passagens que por ti foram indicadas. Anulei-me margeando tuas margens marginalizadas. Deambulei por teus caminhos seguros, embora soubesse que por serem estéreis, seguramente levar-me-iam ao nada. Caminhei à frente da luz para que o brilho irradiante de seus feixes não ofuscasse o fulgor de nosso projeto conservador, privativo, individualizado."

Num tom amistoso pleiteando, talvez, a reconciliação da antiga amizade, o aviso simples, sem grandes pretensões é logo substituído por uma veemente observação:

"Mas eis que é chegado um tempo de passagens."

"Escute atentamente o que agora te digo: as dores vieram, assustaram e passaram. As frustrações, heroínas de si mesmas, foram tragadas pelos anos passados. O medo nascido vive, morto!"

"Já o amor? Ah, o amor! Aquele mesmo intimidado, assustado e cansado, passou! Sim! Ele passou por todos esses anos de frustração, medo e dor. Passou sublime, discreto e nobre. Não assustou, não frustrou, simplesmente passou. Transcendeu as barreiras impostas por você memória póstuma. O amor passou por todos os tipos de prova; tragou o tempo, tornou-se a própria prova!"

Assim como num piscar de olhos, a reflexão partiu do modo não como chegou, pois deixou cravada naquela memória um entendimento que nunca mais a abandonou:

"Memorize estas últimas palavras:

O AMOR JAMAIS PASSA!"

Alisson L de Andrade
Enviado por Alisson L de Andrade em 30/05/2009
Reeditado em 26/01/2010
Código do texto: T1623064