Inversão das coisas e coisas invertidas

Ontem vi um poema

apressado no meio do povo

voltando do trabalho

indo pra sua casa

na carteira

identidade

CPF

título de eleitor

antes de ontem vi outro poema

caminhando com os filhos e a esposa

sorrindo de seu cachorro

chorando de dor na cabeça

e tomando um picolé com um amigo

barba feita

sandálias novas

pulseiras nos braços

patins nos pés

hoje eu vi deveras um poema

um poema escuro, branco, amarelo ou negro

a cor, bem não me lembro

sei que era um poema

o vi ontem

na saída do prédio onde mora

na porta da casa que é seu lar

no batente de seu barraco

na sacada de sua janela

sim, dei de cara com um poema

tinha identidade, CPF e título

roupas, sandálias, casa

dinheiro, família e amigos

e era um poema

um poema cidadão

melodiosas eram suas palavras

bem trabalhadas suas estrofes

rebuscados como aqueles

não haviam outros versos

sim, não haviam

mais que parnasiano

mais que perfeito

mais que preciso

era tudo isso e mais um pouco

Mas

era um poema, apenas um poema

nada mais

então me dei conta

da estranheza daquela visão

os poemas não comem

a não ser os nossos olhos cativos à sua beleza

os poemas não têm amigos

a não ser os outros poemas que estão juntos num mesmo livro

os poemas não choram

a não ser quando regados por nossas lágrimas

e os poemas também não ouvem nem falam

a não ser por nossos ouvidos e bocas

então poemas não são pessoas

poemas são poemas

pessoas são pessoas

mas eu vi um poema cidadão

uma coisa criada pelo homem

andando pela rua como homem

andando pela rua

andando

como homem

e vejo todos os dias

como criamos nossas coisas

como exaltamos nossas coisas

como idolatramos nossas coisas

e como não vemos outras coisas

mais importantes que as coisas-coisas

essas são as coisas-pessoas

são as coisas-crianças

essas coisas eu não vi ontem

eu não vi hoje

e eu talvez não veja amanhã

(indiferença)

pois as coisas que têm vida

nem sempre são vistas

como as coisas que não vivem

e as coisas que sentem dor e fome

nem sempre são queridas

como as que não sentem nem choram

coisas-pessoas

que vivem e sentem

nem sempre têm identidade, CPF ou título

nem sempre têm trabalho

nem sempre têm filhos e esposas

nem sempre têm famílias

nem sempre têm casa

nem sempre têm sandálias

nem sempre têm sorvete

nem sempre têm patins

nem sempre têm pulseiras

e nem sempre têm essas coisas

porque nem sempre têm amigos

porque nem sempre têm outras coisas-pessoas

que as queiram bem

que também as vejam como coisas-pessoas

como cidadãs

que as vejam

e, independente disso

continuam respirando.

Fabio Ferreira S
Enviado por Fabio Ferreira S em 18/07/2012
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