Se ao Menos Hoje
Se ao menos hoje eu pudesse apenas acariciar
A ternura celeste que tanto emergia do teu olhar.
Se ao menos hoje eu pudesse deveras esquecer
A tua morte, e dormir em paz nesse dúbio anoitecer.
Se ao menos hoje eu conseguisse acreditar
Que a morte não é o fim de tudo e Deus é real.
Se ao menos hoje a tua voz pudesse me encontrar,
e sentir dissipar na alma essa tristeza descomunal.
Se ao menos hoje meus olhos conseguissem cientificamente ver
As mãos de Deus esmagando eternamente a existência de todo mal,
As mãos de Deus a tecer nos hospitais e lares curas e soluções afinal,
Se ao menos eu conseguisse ver o mundo e finalmente o entender!
Se ao menos hoje minhas mãos tivessem o sagrado dom
De talhar na alma as linguagens da empatia e da ciência.
Se só hoje a corrupção devorasse suas próprias violências,
E o leme da alegria fosse a descoberta de um novo sol e som.
Se ao menos hoje essa angústia da tua ausência ficasse calada,
Se essa dor em não te ver mais estivesse sepultada no esquecimento;
Mas a saudade e a esperança só intensificam este meu sofrimento
De querer te ter de novo; Deus: a vida humana é a tua estrada errada?
Se ao menos eu pudesse me esquecer e esquecer tudo o que aconteceu.
Se ao menos eu conseguisse zombar de todas as humanas desgraças.
Se só hoje eu digerisse todas as ilusões em um só gole dessa taça,
E na taça e nesse gole amar e aceitar o mundo que nunca nos mereceu.
Se ao menos hoje me refugiasse em qualquer seita, mito ou crenças:
Todos os caminhos de Remissão ou de Condenação não levam a nada,
Pois os valores, metas e sonhos são invenções persuasivas imensas
Que tentam convencer que não somos mera poeira fútil e condenada.
Se ao menos hoje houvesse um pacto, uma garantia indubitável
De que eu encontraria, veria e abraçaria minha irmã depois da morte.
Se ao menos hoje a vida não fosse esse débil enigma tão inefável,
Se só hoje nada dependesse de nada: seja do acaso ou deus ou a sorte.
Se ao menos hoje o milagre de existir fosse o sol da virtude,
E a vida não fosse apenas “nascer, trabalhar, procriar e falecer”;
Se ao menos hoje pudéssemos nos livrar do livro da inquietude,
E sorrir e andar e beijar e abraçar e chorar com nossas solitudes.
Se ao menos hoje meu coração não percebesse esse comércio infenso
Que monopoliza as amizades, as famílias, as religiões e até o amor.
Se ao menos hoje a felicidade abrisse uma porta em tudo o que penso,
E dentro de meu ser transbordasse a luz atemporal de ti_ minha flor.