Para quem a vida é

Certo dia

Cansado de andar sem rumo

Eu parei sob uma árvore dessas

Que há nas estradas de terra nordestinas

E me escondi do sol.

Fazia muito tempo que andava

Minhas sandálias haviam se desfeito por aquelas terras quentes

E, ao sentar, fiquei a olhar para os meus dedos

Já sem a cor natural da pele

As unhas como serras

De tantas vezes que haviam se quebrado

Pareciam dentes de piranhas vermelhas.

À medida que meu olhar ia deslizando sobre minhas pernas

Eu via como minha roupa estava puída

E suja

De algum modo elas estavam esquecidas

Estavam morrendo

Eu podia ver minhas canelas,

Sobre elas uma fina camada de poaca

Escondia a pele,

Apenas os pelos se mostravam,

Mas sua cor natural era de impossível percepção...

Estava encostado à árvore, pequenas formigas pretas me faziam companhia.

E eu olhei para meus braços

Que no balançar natural do caminhar

Não se casaram,

As mãos estavam grossas,

Não mais que os pés

Pois esses resistiam a pequenas pedras

E até as quebravam se por caso as pisasse durante a marcha,

A sola de meus pés

Não precisavam mais de proteção,

Suportavam a temperatura do nordeste,

Espinhos se quebravam sob ela,

Na verdade, eram quase tão resistentes quando os cascos de um jumento.

As unhas dos meus dedos das mãos,

Como a pele desses,

Haviam ficado grossas

E um encardido havia se unido tão fortemente a elas

Que delas já fazia parte.

E o fato de elas terem ficado resistentes

Tem me sido muito útil em várias situações,

Para quem caminha como eu

Unhas fortes podem representar ferramentas cortantes,

Úteis na hora de se alimenta,

Seja de frutas ou pequenos animais.

Eu admiro as unhas que tenho.

Abri os botões da camisa,

E meu tórax enxuto

Mostrava claramente a estrutura de meu esqueleto,

Então eu pensei no que eu era,

Aquilo, osso coberto por carne seca?

A sombra estava boa

Na verdade, há muito não encontrara uma árvore tão bondosa...

Já era quase noite e eu cogitei passar a noite ali,

Não que não gostasse de andar à noite,

À noite era maravilhoso, só se ver a beleza superior

Das coisas quando os olhos não conseguem ver

O que está próximo, e você não sabe em que direção anda,

Nem para aonde vai, nem lembra mais de onde saiu.

Para muitas pessoas isso seria um desespero,

Mas para mim que já estou sob esse jugo há muito,

É um prazer imenso ver que na escuridão da noite

Há majestosas beldades intocáveis que nos espia

Lá de cima, mas sem nunca deixarem-se tocar...

Mas não é isso que importa,

Porém, sim o ópio que elas derramam sobre quem

Caminha assim como eu,

Para quem a vida é,

Esse ópio libera as substâncias do cérebro

E esse cria mundos e mundos cada um sob

A medida do sonho de quem caminha assim como eu,

Cada mundo, cada beleza contida em cada um deles...

Veramente eu desconfio muito

Que esses mundos não estão assim

Tão distantes, nem que o ópio estelar

Seja, assim, as portas que permitem adentrá-los,

Não sei, porém algo me diz,

Que esses mundos são pequenas gavetas

Mágicas que contém tudo aquilo que um dia

Para gente foi significante,

Momentos bons ou não, momentos marcantes do nosso tempo limitado...

Então, no meio da escuridão,

Seja por falta de sol, ou por falta de força,

Visitamos essas gavetas no interior

Do ser que fomos

E remexemos ali,

Cada gaveta guarda uma substância,

Cada gaveta guarda uma essência,

E então, de acordo com a necessidade,

Criamos o mundo que não tivemos,

Nem temos,

E neste momento a vida não é,

Cria-se uma reticência no tempo,

E é o sonho passa a ser,

E nós não somos mais,

Somos outro,

Aquilo que vemos a olhos cerrados,

Criaturas felizes brincando e sorrindo

Num mundo claro em que as regras

São criadas e mudadas a todo instante,

Por que durante essa reticência

Nós só fazemos o que temos vontade de fazer...

Eu faço apenas aquilo que tenho vontade,

E minha vontade agora é ficar aqui.

Sinto um pouco de fome, mas sei que

A fome não castiga o estômago continuamente,

Ela vem e ela vai,

Portando amanhã, se o amanhã houver,

Tratarei de comer algo,

Agora não.

Agora apenas quero ficara aqui

E admirar o meu rosto ao toque

De minhas mãos duras,

São meu espelho,

Através delas eu me reconheço

Como um cego que se guia aos toques pelas paredes da casa

A fim de encontrar o banheiro,

Ou outra coisa qualquer...

Mas mãos tão pedregosas

Devem modificar aquilo em que toca,

De modo que a cada vez

Que tento ver-me,

É sempre outra pessoa que encontro,

E é bom saber que não é apenas

A noite que se transforma,

Não é apenas os córregos que deixam de existir

Eu também vou ficando pela estrada,

Como as sandálias que tinha,

Como as roupas que tinha,

Parte de mim também vai ficando pela estrada...

Assim, eu sempre sou,

Mas também eu sempre fui,

Desse modo, morro e nasço,

No toque dessas mãos

Com a freqüência com que as levo ao rosto

E as deslizo sobre esses cabelos

Longos, essa barba comprida,

Minhas referências de tempo,

Não da data exata, nem da hora exata,

Coisas que não importam mais,

Mas que marcam a distância

Em que deixei de seguir por caminhos

Que outrem achava, por um motivo

Ou por outro, como bom ou mau desígnio,

Que era o melhor para mim...

Por que eu deveria lhes crer?

Eu tenho angústias que ninguém pode parar,

Eu choro dores que ninguém pode explicar,

Eu sinto o universo inteiro dentro de mim,

Suga-me um o mais enorme dos buracos negros

Dos universos,

Todavia resisto, não vou, não cedo a nenhuma força,

Somente ao cansaço eu respeito,

Por que a máquina não agüenta,

Mas eu que vivo preso nela,

Resisto a tudo, a qualquer tentação,

Sou senhor do meu domínio,

E mesmo quando estafada

A máquina para, dentro dela,

Às janelas cerradas eu sou livre,

Por que aprendi a combinar as substâncias

Das gavetas mágicas

E vejo sempre, mesmo estando não vivo,

A luz de uma boa estrela,

A mesma que me atraiu certo dia,

Ou noite, não sei,

E me fez seguir o desrumo,

Seguir atrás daquilo que me é extremamente prazeroso,

Fazer o que a minha alma tem vontade de fazer,

Fazer o que eu,

Eu, não o corpo que não sou,

Mas eu, eu que grito aqui de dentro

Os gritos mais solitários por esses descampados,

Os gritos mais silenciosos que podem existir,

Os gritos mais indecifráveis que podem existir,

Em línguas intangíveis a outrem,

Entretanto completamente compreensível

Pela luz maravilhosa da estrela

Que carrego dentro de mim,

E que todos, eu sei,

Podem carregar dentro de si

Uma estrela particular,

Se, assim como eu,

Puderem ver,

A olhos cerrados

O que há de maravilhoso

Em cada pessoa desse mundo,

Em cada pedra desse mundo,

Em cada coisa,

Por ínfima que seja,

Que há nesse mundo...

Por que quando cada um de nós

Nasceu,

Deram-nos a luz...

E uma boa estrela

Nesse mesmo instante,

Também foi posta no céu com a principal função de ser extremamente brilhante...

Que tudo seja não como alguém queira,

Que tudo seja como dever ser... Apenas isso...

Sebastião Alves da Silva
Enviado por Sebastião Alves da Silva em 28/10/2007
Código do texto: T714071
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