O caldo das palavras

Chegar da feira com laranjas

não dava caso da aptidão

para acordar a memória.

Enquanto a água banhava as cascas

alaranjadas feito o sol lá fora

(que amarelo é tinta para o interior)

a infância trouxe uma bacia inteira,

cheia delas...

laranjas alaranjadas...

lar... anjas...

laranjadíssimas...

todas dizentes,

ao redor da mesa,

cada uma no aguardo de vez e voz.

Havia uma verdade

no modo como nossa mãe

descascava laranja...

Ela retirava a casca da vida...

o grosso dos encobrimentos...

a aspereza exterior.

A faca passava com delicadeza

sem machucar a pele das laranjas,

como modo de dança

que desvela segredos.

Era um fino gesto de carícia ritmada

na retirada dos mantos,

até a abertura do tesouro interior,

repleto de umidade e sabor.

O caldo daquelas laranjas

continua nos alimentando...

Quando o levamos à boca,

ele toca a língua materna

e isso nos faz desejar

uma jarra inteira

para alimentar a nossa herança.

E o aroma do sumo

impregnado naquelas mãos

(que não se sabiam

escrevendo poemas),

é ainda esse

sentido agora

no ato de espremer

o caldo das palavras.