O Auto-Enterro

O que agora vou contar

Ocorreu de tal maneira

Que parece brincadeira.

Mas verdade eu sei que é,

Então pode botar fé

E se pôr a escutar.

Homem tinha na cidade,

Homem rico, coronel,

Engomado e de chapéu.

Era dono de fazenda

E vivia só da renda

Desta grã propriedade.

Mas vivia solitário

Num ilustre casarão

— Vida erma, ermo coração —;

Sem família, só o criado;

Morreu só, ao dinheiro atado:

Eis o dito fato hilário.

Ocorreu que no velório

Deste excelso militar,

Por não ter familiar

Que o seu corpo cortejasse,

Seu criado planejasse

Um belo ato escapatório.

Deu-se então que este criado

Resolveu oferecer,

A que certo merecer,

Razoável pagamento

Do não feito testamento

Deste vil amesquinhado.

E bem alto proclamou:

"Este pobre que aqui jaz

Não achou a sua paz

No outro mundo. Eu lhes suplico

Que o ajudem, e então rico

lote, que este bem somou,

Em teu nome eu lhes darei."

Num segundo toda a gente

Se achegou subitamente

Para junto do caixão,

E com toda a atenção

Escutaram como a um rei:

"Peço a quem quiser o prêmio

Que se achegue até aqui,

Mas só quatro irão cumprir

A tarefa de enterrar

Este pobre que aqui está;

E então cumpro este convênio."

Não só quatro, mas a turba

Toda armou ao corpo um bote

Na disputa ao grande pote.

A contenda estava armada:

Alguém fez um pau de espada,

Mas saiu de cara rubra.

E naquela confusão

De querer levar defunto,

O caixão num só segundo

Escapou de toda a gente,

E a ladeira mais à frente

Foi que fez a condução.

O caixão desceu num triz

Indo rumo ao cemitério,

E eu agora falo sério

Sem fugir da fala certa:

Sua cova estava aberta,

E isso eu sei que tudo diz.

O ataúde do mesquinho

Se enfiou na justa cova

E a cidade toda é prova

Que o meu dito não tem erro:

Que pra não gastar no enterro,

O avarento o fez sozinho.

Marcel Sepúlveda
Enviado por Marcel Sepúlveda em 17/05/2015
Reeditado em 18/06/2015
Código do texto: T5244912
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