Retorno a São Carlos: Somnium noctis solstitialis (Canto VIII)

Como era de esperar-se

A Catedral estava em pé;

Deu-me ganas de adentrá-la

Apesar da falta de fé,

Pois não é preciso ser

Muçulmano, judeu, cristão

Para reparar na beleza

De tamanha construção.

(Sem rodeios digo porém

Que muito mais feliz seria

Se não erigissem igrejas,

E sim mais livrarias!)

Há muito já me esquecera

De como aparentava

Em seu interior, já que

Numa igreja não pisava

Desde aquele dia

Em que, em São Paulo recém-chegado,

Fui à Catedral da Sé

E lá orei, maravilhado.

São excelsos os vitrais!

A luz neles a incidir

Faz tudo numa bela

Explosão de cores refulgir,

E a cada canto que se olhe,

Cobertas de enfeites tantos,

Há monumentais estátuas

De veneráveis santos –

A mais bonita dentre elas

(Deveras obviamente)

É a de São Carlos Borromeu,

Que autorizou gentilmente

Que concedessem seu nome

À minha querida cidade –

Decisão esta que não cri

Ser muito boa, em verdade.

Refleti comigo mesmo,

À estátua admirando,

O que diria a respeito

Este cardeal venerando

Se soubesse que seu nome

A um lugar inteiro daria:

“Ora! Humano é, afinal –

De vaidade se encheria!”

Mal terminei de dizer

Tais palavras a sotto voce

E ela pareceu mover-se

Como se de carne fosse!

Apontando-me um dedo,

Severamente encarou-me

E com uma voz retumbante

De tal modo admoestou-me:

“É Galaktion, o ateu!

Tu que, depois de anos tantos,

Vens perambular por

Estes corredores sacrossantos,

Clama Deus por tua alma!

É tempo de tua conversão!

Este milagre lhe opero

Por Sua graça e sanção!”

E desta forma respondi:

“Nada em ti vejo de anormal;

Tal demonstração deve ter

Algum pretexto racional.

Tantas coisas vi nos Fens

Andando à noite, embriagado,

Que uma estátua que me fala

Não me deixará espantado –

Caprichai em teus prodígios

Se queres me impressionar…

Até lá, minha Bíblia

Continua sendo Holbach.”

O santo empertigou-se:

“Seu herege impertinente…

Noutros tempos jogariam-no

Numa fogueira ardente!”

“Coisa que talvez seria

Apetecível a mim.

Cessemos tal discussão

E as pazes façamos enfim!

Enquanto podes falar

Ainda, e também se mexer,

Responda uma questão

Importante que quero saber:

Quando o nome de um santo

É dado a uma cidade,

Sentem-se eles felizes?

São imunes à vaidade?”

Aparentando ofendido,

Exclamou ele: “Ó ateu!

Saber algo como isto

Não é do interesse teu!”

“Me pareces transtornado

Não o esconda: eu reparei!

Diga-me, sem mais delongas,

Aquilo que eu já sei…”

Admitindo sua derrota,

A estátua fundo suspirou –

Nos termos que se seguem,

Seu discurso iniciou:

“Se vos digo estas coisas

Não é voluntariamente –

Tais segredos revelar

A um ateu impenitente…!

No entanto, o coração

Trago há muito tempo opresso

E, seja por bem ou por mal,

Será a ti que o confesso:

Sou motivo de chacota

Lá no Céu entre os meus!

Não me poupa de gracejos

Nem mesmo o Senhor Deus!

Há anos já não zelo

Por este povo ignorante,

Que da luz da sapiência

Está cada vez mais distante!

Em verdade, Satanás

Passou por aqui de raspão

Sucumbindo ao cabo de sua

Fracassada rebelião;

O próprio chão onde esta

Cidade horrenda se assenta

É maldito! Nem o mais

Santo dos santos o aguenta!

Há aqueles que se alegram

Recebendo do Senhor

As honras de uma cidade

E o posto de seu protetor –

Nós, santos, somos humanos:

Outros mais, outros menos

Apegados à Matéria

E aos valores terrenos.

Mas do que tenho a orgulhar-me

Neste maldito lugar?

Nem mesmo mil Catedrais

O poderiam abençoar!”

Falou muito mais ainda,

Mas já havia me cansado

De escutar as lamentações

Daquele pobre coitado.

Tal é minha paga por

Querer meter-me em religião!

Um santo não sabe falar

Sem descambar para um sermão!

Afastei-me de fininho

E andei até o Sol baixar;

Tão estoico quanto Don Juan

Em seu fatídico jantar.

(Não pude, porém, deixar

De dedicar-lhe compaixão;

Até jurei ofertar-lhe

Uma ou outra oração.

Seja ou não ateu, ouvir

Do padroeiro da cidade

Que tem ódio dela, é algo

Bem ruim, não é verdade?

Que interpretem a seu modo

Os teólogos meu poema!

O que vejo, escrevo; se blasfemo

Não é meu problema!)

Cheguei até minha casa;

Por ele rezei um “Creio”,

Um “Pai-Nosso”, uma “Ave-Maria”,

E então o sono veio.

Galaktion Eshmakishvili
Enviado por Galaktion Eshmakishvili em 22/10/2021
Reeditado em 25/10/2021
Código do texto: T7369318
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