Sem fim, sem começo, hoje acordei.

Hoje acordei

Vendo tudo aos avessos,

Sem fim, sem começo,

Hoje acordei.

De cara amarrada,

Com a alma entalada,

Dizendo coisa com coisa.

Jurando que era noiva

Da madrugada.

Hoje acordei

Com as costas pesadas,

Com a alma amassada,

Por que eu não sei.

Levantei com os dois pés canhotos,

Com os cabelos soltos,

Hoje acordei.

Com uma amargura danada,

Com raiva de tudo,

Mas com ódio de nada,

Hoje acordei.

Ainda dormindo.

Chorando, sentindo

Que estava amarrada.

Sem querer despertei

Meio assustada,

Com medo do Rei

Que comigo gritava.

Pela morte de Deus

Ele me culpava.

Hoje acordei

Sem nem ter dormido,

Com o peito dorido,

Com as pernas pesadas,

Com as entranhas mexidas,

Hoje despertava.

De um sono profundo,

Com a culpa do mundo,

Hoje levantava.

Quase afogada,

Com as lágrimas caídas.

A loucura parida,

De manhã já chorava.

Esqueci-me de tudo,

Lembrei-me de nada.

Só da morte sabia,

Só de morte falava.

Com a voz meio rouca,

Hoje acordei.

Numa hora escutei

Uma zoada danada.

Cavalos, motores,

Balas disparadas,

É guerra pensei.

Era eu que atirava

Numa aldeia nativa

De gente assustada.

Sangue de menino

A banhar minha espada.

Escalpo de soldado

À cintura levava.

Hoje acordei

Sem sede, sem fome,

Sem pensar em homem.

Tremendo de frio.

Uma desvairada,

A noite pariu.

Quem hoje me viu

Não acreditava.

Estava mais velha,

Com rugas, entrevada.

Mas como criança

Eu me comportava

Feito um vegetal.

Às vezes agia

Com um grau de apatia

De bicho empalhado.

Hoje preferia

Não ter acordado.

Continuar dormindo,

Sonhar um bocado.

Passa três dias

Na cama acampada.

Hoje eu vivi

O pesadelo do hospício,

Foi de um precipício

Que me vi jogada,

Esquecida, largada;

Sempre perguntando

Onde estava errada.

Sem carne, sem peso,

Empestada,

De olheiras nos olhos,

Com a cara assustada.

Porque eu não sei,

Hoje acordei.