Ânsia e Idade

Cumprimenta o porteiro, entra, bate o ponto, espera o sinal.

O sinal soa.

Uma, duas, três aulas.

Pausa. Café.

Um recado vindo de cima: Sua presença está sendo solicitada.

Punhos e olhos se serram.

Respiração ofegante.

O peito dói e o pulmão tenta respirar.

A boca se fecha como se nunca tivesse se abrido na vida.

Ombros endurecem.

Coração gelado.

Se lembra de todos os erros.

Os de hoje, de ontem, de antes de ontem, do ano passado da década passada, talvez até da vida passada.

Se levanta, se alonga, e vai.

Interpreta ser quem não é.

Era apenas um recado. Nada grave.

O corpo começa a voltar ao normal.

O sinal soa.

Uma, duas aulas.

Guarda os livros no armário, bate o ponto, sai à passos largos já procurando as chaves do carro no bolso esquerdo da calça.

Pede licença, sai, atravessa a rua, destrava o carro.

Abre a porta, joga a bolsa no banco do passageiro, se senta, fecha a porta.

Finalmente o cigarro.

Um trago e o telefone toca.

Verifica quem está ligando.

Os olhos se arregalam.

As mãos tremem.

O peito dói.

Pulmões buscam o ar que parece não existir.

Os dentes se travam, como se quisessem quebrar algo.

Ombros travados..

Coração parece querer fugir do peito.

Se lembra das frustrações, injustiças, maldizeres e arrependimentos.

Respira. Em vão, mas respira.

Atende, e interpreta novamente um de seus personagens.

Até se acha um bom ator as vezes.

Sorri, conversa, corrige algumas coisas delicadamente, fingindo ser simpático.

Calcula milimetricamente cada palavra proferida.

Marca um horário, se despede, desliga o telefone, e volta a respirar.

Um trago para acalmar o coração.

Se olha no retrovisor.

Uma, duas, três... algumas rugas amais.

Um, dois... alguns fios brancos amais na barba.

Se lembra de que precisa ir ao banco.

Bufa.

Sai do carro, fecha a porta.

Anda.

Atravessa uma rua e a praça.

Sobe as escadas, entra, deixa chaves e telefone no compartimento, passa pela porta giratória, pega suas coisas, pega sua senha.

Senta-se.

Vê pessoas mais velhas (ou velhas como ele) ao redor.

Repara nos cabelos de uma delas.

Nota que lhe é familiar.

Ela se vira.

Olham-se.

Um encontro indesejado.

Olhos dilatam.

Ombros já estavam rijos antes,

O peito quebra.

Pulmão enche-se de água.

Coração dispara de tal forma que chega doer.

Lembra-se de decepções, ojerizas, fedores e realidades paralelas.

Desvia o olhar, mas o inferno continua em sua cabeça.

Esquece-se do que tinha de fazer ali.

Foge em desespero.

Fica preso na porta giratória.

Tropeça enquanto desce as escadas.

Corre pela praça e quase é atropelado ao atravessar a rua correndo sem olhar para os lados.

O carro.

Não se lembra como entrara nele.

Outro cigarro, dessa vez um mais forte.

Lembra-se de tentar relaxar o maxilar e controlar as mãos para acendê-lo.

As vistas ficam menos turvas.

Sacode a cabeça.

Liga o carro, sai.

Passa pela mesma rua, pela mesma avenida, pára no mesmo sinal, desce pela mesma segunda avenida, pára no mesmo segundo sinal, vira à esquerda para fugir do trânsito.

Estaciona na garagem e entra em sua ostra.

Mastiga e engole algo enquanto assiste ao jornal.

Se lembra de tudo mais que precisa fazer.

E dorme.

Acorda de repente. Como de um coma.

Olha o telefone. Uma mensagem!

Desperta!

Os olhos esbugalham.

Os dentes trincam.

As mãos perdem a firmeza.

O peito se esmaga de fora pra dentro.

Pulmões buscam ar num planeta sem atmosfera.

Ombros como concreto.

E o coração...

Se lembra de que é um morador do passado.

Se lembra de sentimentos, cheiros, momentos.

Responde.

Interpreta.

Fala como se soubesse do que estava falando.

Se despede.

Tenta respirar.

Busca o coração no chão e o põe de volta ao peito.

Vai ao banheiro, despe-se, liga o chuveiro, e deixa a água quente ferver-lhe a cabeça.

Fecha o registro, se seca, e se olha no espelho.

Olheiras.

Incontáveis rugas.

Um, dois, três, dez... vinte fios brancos onde antes não tinha.

Se lembra da idade que tem, e que aparenta ter.

Se lembra da idade que queria ter.

Idade.

O estômago embrulha.

Ânsia de vômito.

Ajoelha-se em frente a privada e põe pra fora todo resto de dignidade que ainda lhe restara.

Põe o dedo na goela para expelir toda sobra de esperança que pensara possuir.

Não sai nada.

Cospe. Dá a descarga.

Lava as mãos, o rosto, escova os dentes.

Vai à cozinha e faz o mesmo chá de todas as noites.

No quarto, senta-se na cama.

Vê na escrivaninha todos os livros a serem lidos e escritos.

Se lembra de prazos, compromissos.

Responsabilidades que não queria ter.

Coisas de gente grande numa mente infantil.

Os olhos explodem.

Os dentes se quebram.

Mãos congelam.

Peito e pulmão não existem.

Ombros colam-se ao pescoço.

Coração pára.

Se deita.

Morre.

Tem os mesmos pesadelos.

Ressuscita no outro dia.

Lê as notícias.

Levanta e se arruma atrasado.

Escova os dentes e penteia o cabelo.

Se cansa de contar a idade no reflexo do espelho.

Toma seu café, sai, vai até a garagem, destrava o carro, entra, liga, coloca em sua estação de rádio favorita.

E parte.

Passa pela mesma avenida e pelos mesmos quebra-molas.

Entra na mesa rua.

Estaciona na mesma vaga.

Cumprimenta o porteiro, entra, bate o ponto, se senta, e espera o sinal.

O sinal soa.

Luan Tófano
Enviado por Luan Tófano em 21/05/2019
Reeditado em 27/05/2019
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